Por: Mateus Lincoln

Mestiçagem romantizada omite violência colonial

A miscigenação brasileira é fruto do domínio dos povos originários e africanos | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Mateus Lincoln

O estudo DNA Brasil, que foi iniciado em 2019 e ainda está em andamento, é conduzido por cientistas da Universidade de São Paulo (USP) com apoio de 12 instituições, sequenciou o genoma completo de 2.723 brasileiros de várias regiões do país. A pesquisa, publicada na revista Science em maio deste ano, envolveu 24 pesquisadores e identificou cerca de 78 milhões de variantes genéticas — 8,7 milhões delas nunca haviam sido registradas em outras populações. A diversidade genética foi destacada por veículos de imprensa como uma característica positiva do Brasil, reforçando a ideia de um povo miscigenado e único. Embora, seja um consenso que a rica variabilidade genética brasileira é um ponto positivo, pesquisadores criticam a falta de contextualização histórica em reportagens que tratam o tema apenas sob uma ótica celebratória.

Para estes especialistas, é problemático tratar a mestiçagem como símbolo de harmonia, visto que a formação da população foi marcada por dinâmicas de exploração, colonização e escravidão, que afetaram diretamente povos indígenas e africanos trazidos à força ao país. É o que explicou Isabel Clavelin, doutora em Comunicação e gerente de projetos sociais voltados à equidade racial e de gênero.

Para ela, o que costuma ser narrado como a construção de um povo diverso e mestiço precisa ser revisto à luz da história. “Essas pessoas chegaram ao Brasil por diferentes razões, mas sobretudo por processos históricos baseados em violência, guerras, sequestros e assassinatos”, afirmou.

Clavelin ressaltou que o tráfico transatlântico de povos africanos, aliado à política de imigração europeia incentivada pelo Brasil no século XIX, foram estratégias deliberadas para atender a interesses políticos e econômicos. Segundo ela, o país tomou decisões legais que visavam mudar o perfil racial da população. “O país decidiu, por lei, que deixaria de ser negro e indígena para se tornar branco. Foi uma política eugenista”, observou.

Essas escolhas, pontuou, deixaram marcas profundas nas relações sociais e nos afetos até hoje. Clavelin destacou que, mesmo nos casos em que se fala de uniões “consensuais” entre pessoas negras e brancas no período escravocrata, é necessário considerar o contexto. “A pergunta que o Jornalismo deveria fazer é: essas mulheres eram livres para escolher? Estavam dotadas das condições de decidir sobre sua vida ou submetidas à violência física, psicológica e econômica?”, questionou.

Clavelin também alertou para o romantismo presente no discurso sobre a miscigenação no Brasil. Para ela, tratar o tema como uma “riqueza” desconsidera o fato de ter sido construída sobre estupros, torturas e o controle dos corpos de mulheres negras e indígenas. “É importante lembrar das marcas nos corpos, dos açoites, das torturas e dos homicídios que atingiam mulheres e crianças para que se mantivesse esse sistema”, disse Isabel.

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Para Clavelin, a imprensa precisa qualificar as informações técnicas da genética, mas rechear com história, demografia e antropologia, para realmente compreender por que essa diversidade existe e a que custo | Foto: León Rodrigues/Prefeitura de São Paulo

E na Biologia?

Wesley Ferreira, biólogo e pesquisador em Antropologia da Conservação e conflitos socioambientais, faz parte do projeto “Biologismo”, que, utilizando páginas nas redes sociais e blogs, reúne especialistas para divulgar estudos científicos. Ele explicou que o próprio estudo genético que vem ganhando destaque nos últimos anos — o projeto DNA Brasil — revela, nos dados, a violência que marcou a formação populacional do país.

O biólogo apontou que as análises do DNA mitocondrial (herdado da mãe) e do cromossomo Y (herdado do pai) mostram uma diferença clara entre as origens maternas e paternas no Brasil. “Quando olhamos para a maternidade, ela é majoritariamente africana e indígena. O cromossomo Y tem 70% de origem europeia, apenas 5% africana e 2% indígena”, detalhou.

Esses números, segundo Ferreira, reforçam o que estudos históricos, arqueológicos e antropológicos já indicavam: o processo de colonização foi acompanhado por estupros sistemáticos de mulheres indígenas e negras escravizadas por homens europeus. O biólogo pontuou que isso contraria a ideia, ainda presente em muitas reportagens, de que a miscigenação no Brasil teria ocorrido de maneira pacífica.

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Para o biólogo Wesley Ferreira, o mito da democracia racial busca uniformizar vivências e fragilizar as identidades negras e indígenas. | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Divulgação Científica responsável

Ferreira chamou atenção para o papel da mídia ao divulgar dados como os do DNA Brasil. Para o biólogo, a ideia de mestiçagem foi usada historicamente para mascarar desigualdades, sustentando o mito da democracia racial, que procura uniformizar vivências e fragilizar as identidades negras e indígenas.

“Uma divulgação científica crítica precisa desconstruir o imaginário da mestiçagem como elemento de identidade nacional positiva e evidenciar os processos históricos de dominação que a constituíram”, disse. Ferreira defendeu que não é suficiente apresentar percentuais ou mapas genéticos sem oferecer contexto.

Para ele, é necessário mostrar por que esses números existem, quem foi prejudicado e como esse passado impacta o presente, seja no racismo estrutural ou na negação de direitos. “É preciso dialogar com a antropologia, a sociologia e a história para interpretar esses dados à luz da violência colonial, do genocídio indígena e do tráfico transatlântico de escravizados”, destacou.

Isabel Clavelin também reforçou a importância de trazer o peso histórico ao se analisar dados genéticos. Ela mencionou que a variabilidade genética encontrada no Brasil não pode ser isolada das condições em que ocorreu. Ela explicou que, ao longo de quase quatro séculos de escravidão, mulheres negras e indígenas foram privadas de liberdade, autonomia e até mesmo do status de pessoas, tratadas como propriedade.

“O Jornalismo deve utilizar de toda a sua tecnicidade com apuração aprofundada, ouvindo fontes especializadas e uma análise do contexto histórico e político para preencher lacunas e elucidar a informação da melhor forma, possibilitando um repertório interpretativo do fato”, afirmou a doutora em Comunicação.

Para Ferreira, uma divulgação responsável dos dados do DNA Brasil precisa evitar leituras simplistas e biologizantes, que explicam tudo pela genética. Ele defendeu que é preciso incorporar outras áreas do conhecimento para interpretar esses achados.

“Precisamos pensar quem perdeu e quem ganhou com isso, e como essas desigualdades ainda aparecem hoje, nas políticas públicas, no racismo estrutural, na negação de direitos a povos originários e afrodescendentes”, concluiu.

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"Quanta história, então, de sangue e suor, sobre o chão de Salvador" - Flor da Bahia - Dory Caimmy e Paulo Cesar Pinheiro | Foto: Prefeitura de Salvador

O Projeto

A iniciativa faz parte do Programa Genomas Brasil, do Ministério da Saúde, que pretende sequenciar o DNA de 100 mil brasileiros. Entre os resultados, o levantamento apontou que, em média, a ancestralidade genética da população brasileira é composta por 60% de contribuições europeias, 27% africanas e 13% indígenas. Também mostrou que o DNA mitocondrial, herdado exclusivamente das mães, é majoritariamente de origem africana e indígena, enquanto o cromossomo Y, transmitido apenas pelos pais, tem 70% de origem europeia.

Os pesquisadores ainda identificaram 36.637 variantes consideradas potencialmente prejudiciais à saúde. Esses dados foram celebrados pela imprensa como prova da grande diversidade genética do país, mas críticos alertam para o contexto histórico que deu origem a essa composição.