Na última semana, em referência ao Dia do Meio Ambiente, celebrado no dia 5, muito se debateu sobre as questões ambientais. A crise ambiental só é macro porque ela afeta diversas microrregiões. O ambiente está doente, e adoece o meio.
E isso acontece no entorno da bela capital brasileira, que completou 65 anos. Apuração do Correio da Manhã constatou o que já se temia: a água mega poluídos do Rio Melchior, de 25 km de extensão, está adoecendo a população que vive próxima das águas, nas chácaras da Comunidade da Cerâmica e Girassol, que fica na zona rural da Região Administrativa de Samambaia. Essa água, inclusive, está projetada para alimentar a instalação de uma usina termelétrica.
O rio é classificado na Classe IV, o pior nível de poluição no enquadramento hídrico de qualidade das águas. A consequência dos poluentes despejados nesse “rio licenciado para ser poluído” é objeto de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalado na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).
Única caixa d’água
O Correio da Manhã constatou que, a única caixa d’água, fornecida pela Companhia Ambiental de Saneamento do Distrito Federal (Caesb), para abastecer os moradores, está vazia. Por isso, as pessoas das comunidades estão recorrendo às águas poluídas do Melchior, ainda que não diretamente. Elas construíram pequenos poços artesianos em seus terrenos. Porém, o lençol freático em torno dessas comunidades, de onde essa água vem sendo retirada, está contaminado pela poluição do Melchior.
O rio recebe cerca de 100 milhões de litros de efluentes poluentes por dia, decorrentes do Aterro Sanitário de Brasília e de duas Estações de Esgoto da Caesb. Há denúncias de despejos de empresas privadas, mas até o momento, sem comprovação.
Licença de poluição
O rio foi classificado como Classe IV em 2014. Isso significa que pode receber despejos de efluentes, o que o deixa inapropriado para o uso humano. À reportagem, a Agência Reguladora de Águas (Adasa) explica que a Classe 4 é regulamentada pelo Conselho de Recursos Hídricos do DF, e que esse enquadramento continua válido até 2030. Destaca que o órgão não autoriza o uso d’água, em nenhuma hipótese, para o consumo humano.
Para o pesquisador José Francisco Gonçalves, esse tipo de classificação é uma “licença para a poluição”.
“Na minha opinião, dentro dos conceitos e estudos que fazemos, é uma licença para poluição. De fato, está enquadrada dentro da lei, mas não é feito o monitoramento adequado que demonstre o parâmetro real das águas. A classe 4, no final das contas, nem tem parâmetro”, avalia.
Lençol freático
O professor João Francisco Gonçalves, cientista do Laboratório de Limnologia/AquaRiparia do Departamento de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB), explicou os riscos que os produtos químicos despejados nas águas do Melchior causam no contato humano.
Em pesquisa realizada em 2024, o cientista identificou altos índices de componentes químicos nos poços dessas comunidades, inclusive o da igreja Congregação Cristã no Brasi, ao qual muitas pessoas das comunidades às margens do rio recorrem para retirar água para o seu dia a dia.
“Analisei alguns poços, a partir da bica, e encontramos problemas. Na água da igreja encontramos Glifosato na sua forma Ampa. O Glisofato é um herbicida. Na forma Ampa, ele é metilado, favorecendo a entrada no corpo humano. A água é plenamente inadequada para o uso de seres humanos e animais. Já constatamos excesso de fósforo, zinco, nitrogênio além de alguns metais lá no rio. Já tivemos várias mortalidades, por exemplo, de tartaruga. Certamente, elas bebem a água e morrem. Se as tartarugas morreram, imagine as pessoas. Elas estão adoecendo pelo problema de abastecimento de água e de segurança hídrica”, denuncia.
Ele afirma que os químicos do Melchior estão atingindo o lençol freático, e, como consequência, vão parar nas cinsternas da comunidade.
“Imagine uma grande piscina fechada, na qual existem furos no fundo por onde a água desce. Agora imagine o solo como uma esponja, então parte da poluição da superfície vai para o fundo e passa pelos buracos. Parece que são ambientes diferentes, mas por baixo eles estão conectados. É a mesma água”, explica.
Realidade
Embora os órgãos recomendem que, por conta da classificação do rio, o corpo hídrico não entre em contato humano, a realidade da Comunidade da Cerâmica exige que se faça o contrário.
Ana Lúcia dos Santos, 68 anos, afirma à reportagem que mora na comunidade há 62 anos. Ela mostrou que a caixa d’água da Caesb, que não tem um pingo sequer de água. Assim, relata que precisa consumir água dos córregos derivados do Melchior e dos poços. Ela também mostrou no corpo feridas, que ela chamou de “perebas”, que ela desconfia sejam consequência do consumo da água.
“A gente sempre usou água do córrego e das cisternas. Quando não sabíamos que tinha contaminação, não tinha problema nenhum. Apareciam algumas doenças, a gente achava que era normal, todo mundo adoce, não é? Aí, depois, no decorrer do tempo, vieram umas pessoas e colheram a água. Aí, falaram que a água que nós bebíamos estava contaminada. Aí, a gente parou de beber aquela água, passamos a usar só para tomar banho, lavar roupa e lavar a casa. Aí, nós arrumamos uma água limpa lá na igreja. Agora, essa também parece que está contaminada, né? Está todo mundo com dor de barriga, ‘vomitação’, em outros dá dor de cabeça... Olha! Meu cabelo deu uma ‘perebeira’, uma ‘feriraiada’ que não sara. Já falaram que é bactéria de cachorro, e nem cachorro eu tenho. Já fui em dermatologista, já fui em posto de saúde, já fui à farmácia, comprei remédio por minha conta, nada melhora. Eu penso que é da água que a gente ‘banha’. Não está contaminando só por dentro, está contaminando por fora também”, relata.
“Eu por mim, bebo água suja mesmo. Mas é porque aqui tem muita criança. Tem criança pequena que está doente, dando bactérias. Se vai no hospital falam que é bactéria, e de novo bactéria. Aí a bactéria é de quê?”, questiona.
Já Milene Pereira relata que seu filho, Jorge Arthur , há um ano, quando tinha 5 anos, também teve sintomas parecidos. Ela conta que o filho brincava próximo ao córrego do rio, e começou a apresentar diarreia e feridas na pele.
“Ele tinha contato com o rio que se encontra com o rio Melchior costumava ‘banhar’ junto com os primos e tios. Moramos próximo dos dois rios, o centro do Melchior que está poluído, a gora o outro, parecia que a água estava mais limpa, mas ficamos sabendo que está poluída também”, declara.
CPI
Durante a 6ª reunião da CPI do Rio Melchior, os presentes na CLDF ouviram especialistas, inclusive o cientista entrevistado, que apresentaram dados e denunciaram riscos do alto teor de toxicidade do rio e em seu entorno.
Ao Correio da Manhã, a presidente da CPI do Rio Melchior, deputada Paula Belmonte (Cidadania), relata já ter tido ciência das doenças nas comunidades rurais que residem próximo ao Rio Melchior. Diante do problema, ela vai requerer, via CPI, que os órgãos competentes façam um mutirão de atendimentos de saúde para as comunidades.
Na última quarta-feira (4), integrantes da CPI sobrevoaram o local. “Constatamos algumas descargas significativas e, diante disso, tomaremos as providências necessárias, acionando os órgãos de fiscalização e controle para que possamos esclarecer, com rigor, o que está sendo despejado no Rio Melchior Também vamos realizar análises detalhadas da qualidade da água nesses pontos. Sobrevoamos desde o nascedouro até a confluência com o rio Descoberto e ficamos particularmente preocupados com o trecho entre a estação de calcário e a nascente”, declara.
O que diz a Caesb
A reportagem relatou a falta d’água e as consequências da deficiência no saneamento básico para a população que reside no rio. Em nota, a empresa respondeu que monitora as águas, e que os resultados indicam qualidade de acordo com os níveis estabelecidos em seu enquadramento.
Na última reportagem especial do Correio da Manhã sobre a situação do rio Melchior, publicada em 7 de abril, a companhia anunciara que estava aplicando R$ 240 milhões na melhora do Rio Melchior. Agora, a Caesb informa que as ações de melhora serão licitadas ainda este ano.
“A Caesb informa que os planos de melhoria e de ampliação da ETE Melchior continuam ativos. Uma parcela dessas melhorias, que é a fase de polimento final, já se encontra em execução. As demais parcelas desse conjunto de obras deverão ser licitadas no decorrer de 2025”, afirma.
Além disso, a Caesb afirma que apresentou um plano de abastecimento de água potável para as comunidades da Cerâmica e Girassol.