Durante décadas, empresas fabricantes de fórmulas infantis, suplementos alimentares, bicos, chupetas e mamadeiras investiram em estratégias de marketing para promover seus produtos. Apresentados como alternativas ao leite materno, esses itens contribuíram para a queda nas taxas de amamentação em diversos países do mundo.
Em 1981, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno para regulamentar a promoção de fórmulas infantis e proteger a amamentação. O objetivo é evitar que o marketing interfira na decisão das mães e garantir acesso a informações corretas sobre os benefícios do aleitamento materno.
Aleitamento exclusivo
Em 2001, em razão das evidências da superioridade do leite humano, a OMS passou a adotar como recomendação o Aleitamento Materno Exclusivo por seis meses. Segundo especialistas, a prática do Aleitamento Materno Exclusivo até os seis meses de vida tem diversos benefícios: ajuda na flora intestinal, no metabolismo, no desenvolvimento cognitivo, cerebral e imunológico do bebê. Dessa forma, o bebê se beneficia de todos os componentes do leite materno. Além disso, é só no leite materno que há a presença de proteínas de células de defesa que aumentam a imunidade da criança e a presença de lactoferrina, que será responsável na melhor absorção de ferro.
Após anos de estudos conduzidos pela OMS em parceria com entidades internacionais, a 78ª Assembleia Mundial da Saúde aprovou uma nova resolução que estabelece regras para o marketing digital de substitutos de leite materno. A iniciativa que teve a liderança do Brasil — reconhecido mundialmente por sua atenção na área — e contou com o apoio da Noruega e do México, atualiza o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, que existe há 44 anos. O objetivo é acrescentar diretrizes e recomendações específicas para que haja fiscalização e controle da publicidade desses produtos nas plataformas digitais.
A proposta foi apresentada pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e recebeu a aprovação dos países-membros da ONU, tornando-se referência global para as legislações nacionais. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) participou de forma ativa na elaboração do texto.
“Conquista histórica”
O pesquisador Cristiano Boccolini, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica (Icict/Fiocruz) acompanhou todo o processo, desde a produção das evidências científicas até a construção final do documento.
Segundo o pesquisador, a aprovação da proposta é uma conquista histórica para a proteção do aleitamento materno. “A OMS não tem poder de fiscalização ou punição. O papel dela é orientar os países sobre como implementar essa regulamentação em seus próprios marcos legais, promovendo leis e medidas que permitam o monitoramento adequado do ambiente digital. Ou seja, ela fornece diretrizes e ferramentas para os países desenvolverem seus próprios mecanismos de controle.”
Cristiano Boccolini fez parte do comitê supervisor de um estudo internacional sobre o impacto do marketing digital de substitutos do leite materno na saúde pública e nas mães. O estudo revelou que cerca de 80% das mães estavam expostas a algum tipo de propaganda digital desses produtos em âmbito global, e que todos os países investigados apresentaram algum nível de divulgação online de fórmulas infantis e outros substitutos do leite materno.
O pesquisador aponta também que a regulamentação é crucial para que o aleitamento materno mantenha as altas taxas. Segundo ele, em países onde não existe uma legislação específica ou onde as leis não são bem aplicadas, as empresas têm mais liberdade para fazer marketing abusivo. “Isso influencia diretamente nas escolhas alimentares e reduz as taxas de aleitamento materno. O marketing tenta convencer as mães de que a amamentação não é tão necessária assim, oferecendo uma alternativa ‘mais fácil’, ‘mais prática’, o que não é verdade. Essa influência afeta a saúde dos bebês, que deixam de receber o leite materno, essencial para o desenvolvimento”, explica Boccolini.
“Extrema importância”
Na avaliação da médica pediatra e membro da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan), Miriam Oliveira dos Santos, a regulamentação do marketing digital é de extrema importância. Ela afirma que, com o avanço da industrialização, muitas mães passaram a adotar fórmulas infantis, o que contribuiu para a queda nas taxas de aleitamento materno. Agora, com a popularização das redes sociais, esse cenário se intensificou, tornando ainda mais urgente a regulamentação do marketing digital voltado a esses produtos.
“No Brasil, as taxas de amamentação melhoraram ao longo das últimas décadas, mas ainda estão aquém da meta global. Nos anos 1970, o aleitamento caiu drasticamente, influenciado pela industrialização e pela forte propaganda de fórmulas infantis, que muitas vezes eram promovidas como equivalentes ao leite materno. Com campanhas de conscientização e políticas públicas, o país conseguiu avançar: hoje, cerca de 45% das crianças menores de seis meses são amamentadas exclusivamente. No entanto, a meta definida pela OMS e pactuada com os países é alcançar 70% até 2030.”
Bancos de leite
A Organização Mundial da Saúde aponta que o Brasil conta com a maior e mais complexa Rede de Bancos de Leite Humano do mundo. O Ministério da Saúde recomenda a amamentação até os dois anos de idade e que nos primeiros 6 meses, o bebê receba somente leite materno (aleitamento materno exclusivo), ou seja, sem necessidade de receber água, suco, chás e outros alimentos.
De acordo com o ministério, 193 lactantes foram responsáveis pela doação de mais de 245 mil litros de leite materno em 2024. As doações foram fundamentais no aumento das chances de recuperação de mais de 219 mil recém-nascidos prematuros e de baixo peso internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em todo o país.
O pesquisador Cristiano Boccolini destacou a importância do aleitamento materno. “Hoje temos boas taxas de aleitamento materno, inclusive o continuado. Isso é resultado de políticas públicas fortes, como a rede de bancos de leite humano — que está presente em todo o território nacional e é exportada como modelo para outros países —, além da legislação que protege as mães contra interferências comerciais na sua decisão de amamentar.”
Atualmente, o país conta com 222 bancos de leite humano distribuídos por todos os estados e 217 postos de coleta. A doação do leite materno passa pelo processo de coleta, processamento e distribuição para bebês prematuros internados ou com patologias, e que não podem ser alimentados diretamente pela mãe. Segundo a pasta, um pote de 200 ml pode alimentar até 10 bebês prematuros ou de baixo peso.
Por diversas razões, nem todas as mulheres podem amamentar seus bebês. No Brasil, a amamentação é contraindicada caso a mãe seja portadora do HIV (vírus da Aids) e do HTLV1 e HTLV2 (vírus que comprometem as defesas do organismo). Além disso, quando a mãe faz uso de algum medicamento incompatível com a amamentação, por exemplo, no tratamento contra diversos tipos de câncer. Mães usuárias regulares de álcool ou drogas ilícitas (maconha, cocaína, crack, anfetamina, ecstasy e outras) não devem amamentar seus filhos enquanto estiverem fazendo uso dessas substâncias.
Direitos das mulheres
O Brasil conta com importantes instrumentos legais para apoiar o aleitamento materno, como a licença-maternidade garantida pela lei trabalhista, que assegura quatro meses de afastamento para as mães que trabalham.
Apesar dos avanços, a pediatra Miriam dos Santos afirma que muitas mulheres que trabalham na informalidade seguem desprotegidas. Sem vínculo formal de trabalho, elas não têm acesso aos direitos previstos na CLT nem aos benefícios garantidos a servidoras públicas. Isso representa um entrave para a continuidade da amamentação após o nascimento do bebê.
“Muitas mulheres trabalham por conta própria, vendem roupas, doces ou fazem serviços domésticos para sustentar suas famílias. E, nesse cenário, manter a amamentação se torna extremamente difícil”, explica a pediatra.
Ela frisa a necessidade de políticas públicas específicas que alcancem essas mães. “Medidas como a criação de salas de apoio à amamentação em locais de trabalho ou próximos a áreas de comércio informal são fundamentais para que essas mulheres possam extrair, armazenar e transportar o leite com segurança.”