No dia 31 de março de 1964, o Brasil assistia à queda do presidente João Goulart e ao início de um regime militar que perdurou até 1985. Sessenta e um anos depois, a data ainda desperta debates acalorados e interpretações conflitantes na nossa sociedade.
Já no início do ano de 2025, o Brasil parou para acompanhar em conjunto uma das maiores premiações do cinema do mundo, o Oscar. A união das pessoas tinha em comum a torcida pelo filme de Walter Salles, estrelado pela atriz Fernanda Torres, que concorria ao prêmio de melhor atriz, e por Selton Mello. Na obra, um tema que para muitos estava esquecido, mas que para outros ainda resiste ao tempo: a ditadura. O assunto voltou aos debates populares após os atos de vandalismo de 8 de janeiro de 2023. O que ali teria acontecido foi somente uma manifestação popular que fugiu ao controle ou parte de uma trama elaborada para usurpar o poder? Essa questão é o cerne do julgamento que acontece no Supremo Tribunal Federal (STF), que coloca como réus o ex-presidente Jair Bolsanoro e outros.
A memória e o esquecimento são temas complexos que envolvem a ditadura militar no Brasil e que estão relacionados com trauma, silêncio e política. E, partindo dessa premissa, o militar de carreira e historiador Juan Martinez Bender lança em Brasília, no próximo dia 12 de abril, o livro “O que você ainda não sabe sobre 1964: ideologia & polarização na Guerra Fria do Brasil” (Editora Appris). A obra propõe uma análise crítica e fundamentada, sem se esquivar das violências cometidas por ambos os lados do conflito, além de traçar paralelos entre o período militar e acontecimentos recentes, como o de 8 de janeiro.
Uma busca pessoal
Durante suas pesquisas, Bender deparou com episódios surpreendentes que desafiam narrativas consolidadas. "Embora tenha começado como uma busca pessoal, a pesquisa rapidamente se expandiu, o que exigiu confrontar os distintos discursos sobre golpe, contragolpe, ditadura, regime militar, revolução e contrarrevolução. Esse percurso trouxe à tona questões fora do escopo inicial, como as divergências sobre o papel constitucional das Forças Armadas ao longo da República. Para evitar reducionismos, optei por um recorte que privilegia informações frequentemente preteridas no debate público, ampliando as perspectivas sobre o período”, explica.
Leitura para todos
Pós-graduado em Filosofia, História e Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o autor propõe uma abordagem que ultrapassa as leituras convencionais, posicionando 1964 em um contexto de Guerra Fria no Brasil. Naquele período, o mundo debatia-se no confronto de suas grandes superpotências. De um lado, os Estados Unidos e parte capitalista ocidental do planeta. De outro, a União Soviética, que se movia no plano de uma revolução comunista internacional. O que politicamente acontecia no Brasil interessava às duas partes desse conflito internacional, que interferia nos destinos do mundo. Em outros países, a União Soviética foi importante, por exemplo, para a revolução comunista em Cuba. E os Estados Unidos, na década de 1970, para depor no Chile o presidente socialista Salvador Allende e permitir a ascensão de Augusto Pinochet como ditador.
Para dialogar com leitores interessados em compreender os bastidores desse período, o livro levanta questões como o fenômeno da intervenção militar e como ele surge e se justifica, seja a ameaça comunista real ou fruto de conspiração, se a luta armada de esquerda foi causa ou consequência da ditadura e como as interpretações sobre 1964 influenciam a política atual. “De muitas formas, o Brasil contemporâneo ainda é um desdobramento de 1964. É um passado em constante disputa”, conta.
Referências
Bender explica que utilizou referências bibliográficas da época para escrever o livro e que a obra veio do desejo de confrontar visões simplificadas ou polarizadas sobre 1964. “Além das fontes primárias (jornais, diários, entrevistas, legislações), foram acessadas e referenciadas pesquisas de dezenas de autores, muitos deles divergentes entre si. No âmbito da História e Sociologia, por exemplo, cito João Camilo de Oliveira Torres, José Murilo de Carvalho, Hélio Silva, Marco Antônio Villa, Rodrigo Patto Sá Motta, Jorge Ferreira, Angela Castro Gomes, Denise Rollemberg, Boris Fausto e Daniel Aarão Reis, além de jornalistas como Ayrton Centeno, Elio Gaspari e William Waack. Entre os escritos produzidos por militares, destaco Nelson Werneck Sodré, Odylio Denys, Sylvio Frota, Ernesto Geisel, Olympio Mourão, Brilhante Ustra, Agnaldo Del Nero e Eduardo Villas Bôas.
Também foram importantes, em especial na parte em que trato sobre Guerra Cultural, os estudos de autores como Agustin Laje, Flávio Gordon, Marques Bezerra, Marcelo Ridenti, Olavo de Carvalho, Marcos Napolitano e Rodorval Ramalho", exemplificou o autor.
Atos de leitura
No total, o livro traz um acervo de cerca de 200 fontes, todas referenciadas em mais de mil notas de rodapé. Nesse sentido, Bender mostra que um dos maiores desafios na hora do processo criativo é tornar a leitura algo de fácil entendimento para o público em geral, fugindo da linguagem totalmente acadêmica. Segundo ele, para atingir o objetivo, investiu muitas páginas na proposta de contextualizar o leitor sobre os eventos que antecedem e circundam a Guerra Fria. Para isso, o livro foi estruturado em 12 capítulos, organizados em três partes.
Na primeira, “Genealogia de 1964”, é apresentada uma visão panorâmica sobre como a história do Exército se relaciona com a própria história do Brasil, ressaltando sua ascensão política e social, bem como a importação de correntes filosóficas que entraram em choque no contexto de 1964. “Como considero que seja o caso do positivismo e do marxismo em suas diferentes vertentes.”
É a partir da segunda parte, “Guerra Fria para além dos livros didáticos”, que o leitor adentra o objeto de estudo propriamente dito. Nessas páginas, sem me furtar à violência cometida por ambos os lados, examino a influência estrangeira em solo brasileiro, não apenas dos Estados Unidos, mas também de Cuba, China e União Soviética, expondo a solidez de uma ameaça por vezes retratada como teoria da conspiração.
É na terceira parte, por fim, intitulada “Ensaios sobre Guerra Cultural”, que Bender reservou um estudo sobre a batalha pela memória de 1964, trazendo pautas que se conectam com nossa contemporaneidade, como é o caso do 8 de janeiro e da confusão sobre o hipotético poder moderador das Forças Armadas. “O livro se encerra com um apêndice, onde procuro desmistificar as complexas e ponderáveis terminologias de golpe, contragolpe, revolução e contrarrevolução, aplicadas ao caso de 1964”, explicou.
Quando questionado sobre o impacto que a obra pode causar nos debates sobre história e política no país, o autor ressaltou que não teve pretensão de ser porta-voz das Forças Armadas: “Priorizei, como critério de recorte, a abordagem dos eventos que considero preteridos — ou mesmo excluídos — do debate público acerca do assunto. Dessa forma, o meu livro visa ampliar, e não substituir; acrescentar, e não descartar o que já foi produzido até aqui. O objetivo é que o leitor adquira uma visão mais ampla sobre as complexidades da Guerra Fria no Brasil, situando os eventos de 1964 em sua devida conjuntura histórica e reconhecendo seus reflexos no presente”, finalizou.
Serviço
A obra será lançada no dia 12 de abril, das 17h30 às 20h30, na Livraria da Vila do Shopping Iguatemi Brasília (Setor de Habitações Individuais Norte, CA 4 – Lago Norte). Evento aberto ao público com entrada gratuita.