Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Plano é poema quando cai na tela

Walter Carvalho estreou o doc. 'Um Filme de Cinema' no Festical do Rio em 2015 | Foto: Divulgação

TV Brasil resgata um documentário lançado há dez anos por Walter Carvalho que analisa o olhar de vozes autorais do audiovisual sobre a arte de filmar

Tem dez anos, cravados no calendário da saudade, que o paraibano Walter Carvalho presidiu o júri da Première Brasil, coroando "Boi Neon" com o troféu Redentor na maratona cinéfila que ele arrematou com uma aula em forma de longa-metragem. "Um Filme de Cinema" (2015) fez sua primeira exibição pública naquele Festival de Rio, numa sessão vespertina no Cinépolis da Lagoa (que fechou, mas faz uma falta danada). Pouco se sabia acerca dessa produção, fora o fato de que Walter reunia, no decorrer de sua narrativa, conversas com muitas vozes autorais com que havia trabalhado na condição de diretor de fotografia - quiçá o mais respeitado deste país no século XXI. Não se esqueça de que ele fotografou "Lavoura Arcaica" (2001) e "Central do Brasil" (Urso de Ouro de 1998). Fez ainda "Amarelo Manga" (2002), que brilhou em festivais como a Berlinale.

Naquela altura da Première 2005, o fotógrafo e cineasta egresso da Paraíba trazia já em seu currículo experiências como realizador, na ficção ("Budapeste", de 2009) e no documentário ("Moacir Arte Bruta"). Mas com aquele curso de narrativa audiovisual que exibiu no complexo da Lagoa, seu status na direção foi para outro patamar, que pode ser apreciado na madrugada desta segunda, na televisão aberta, na emissora educativa, a TV Brasil.

"Um Filme de Cinema" passa na virada de domingo (14/12) para o dia 15, à 0h45. Sua inclusão na grade do canal faz parte da diretriz que a atual diretora de Conteúdo e Programação da EBC (Empresa Brasil de Comunicação, responsável pela grade), a escritora Antonia Pellegrino, tem dado para o cinema. De olho na renovação de gerações cinéfilas, ela levou para a TV Brasil joias (sobretudo nacionais) de fazer inveja a muito streaming de prestígio (e mensalidade salgada). Embora prestigie títulos premiados em Cannes (como "Drive", de Nicolas Winding Refn) e ganhadores de Oscars (como "Blue Jasmine", com Cate Blanchett em trocas com Woody Allen), a atual grade cinéfila que Antonia arquitetou celebra a autoralidade de nosso cinema dia após dia, em horário nobre. Daí a presença de um Carvalho que não verga, como Walter.

"Na distância entre aquilo que se vê e aquilo se deduz reside uma certa poesia que a gente chama de cinema", explicou o realizador e artista visual ao Correio da Manhã.

Ele saiu atrás de desabafos de realizadores icônicos por sua transgressão às cartilhas narrativas da indústria do audiovisual, como a argentina Lucrecia Martel (de "O Pântano"), o húngaro Béla Tarr ("Cavalo de Turim"), o americano Gus Van Sant ("Elefante"), o mezzo moçambicano mezzo carioca Ruy Guerra ("Veneno da Madrugada") e os brasileiros Julio Bressane ("O Anjo Nasceu"), Claudio Assis ("Baixio das Bestas") e Karim Aïnouz ("Madame Satã"). Em sintonia com esse povo, "Um Filme de Cinema" assume como tema o plano: a menor partícula estética de uma obra fílmica. O objetivo de Walter é compreender como tal elemento essencial à linguagem cinematográfica foi sendo barateado pelo mercado, buscando registrar análises de cineastas que ainda preservam a sua pureza.

A gestação desse longa coincidiu com um período intensivo de trabalho de Walter, numa época em que ele fotografou para Selton Mello ("O Filme da Minha Vida"), José Luiz Villamarim ("Redemoinho") e Murilo Benício ("O Beijo no Asfalto"). Paralelamente a suas parcerias com tais criadores, ele dirigiu "Manter a Linha da Cordilheira Sem o Desmaio da Planície", no qual aborda o processo de fazer literário do poeta Armando Freitas Filho (1940-2024).

Existe um dispositivo clássico de escuta no cerne da estrutura de "Um Filme de Cinema", a partir do qual são bem-vindas digressões sobre a Óptica, sob parâmetros da Física, em sua aplicação na dramaturgia, por meio de uma propriedade poética chamada cinemática. Nessa escuta, temos pérolas, como a forma de Tarr pensar a posição do ator num set, diante do que a câmera investiga. Somos brindados ainda com fofocas, como a piadinha de Lucrecia sobre a atriz da série "Friends" (e de bons filmes) Jennifer Aniston. Para além do que ouvimos, Walter consegue transcender a palavra e expor uma natureza experimental, que marca sua identidade autoral como realizador, investigando potências criativas de artistas. Seu apogeu nesse processo é "Iran" (2017), que poderia, muito bem, ser presenteado ao público da TV Brasil qualquer dia desses.