Canal Brasil renova seus votos com as pautas mais urgentes do país ao exibir o melhor Filme do Festival do Rio de 2022, que discute transfobia à luz de uma protagonsita queer
Desde sua inauguração, em 1998, a vocação essencial do Canal Brasil é servir de plataforma para invenções de nosso audiovisual, com a coragem de comprar as brigas geopolíticas que mobilizam nossa arte. Sem medo da desmobilização da TV a cabo, a emissora faz jus a seu compromisso de gênese ao transmitir um diamante como "Paloma" nesta segunda-feira, às 23h. A produção dirigida por Marcelo Gomes venceu o Festival do Rio 2022. Ela ganha agora um novo lar.
Comovente crônica da afirmação identitária das populações trans no país, ambientada no agreste de Pernambuco e avessa ao preconceito, "Paloma" levou o cinema nacional para a Alemanha, na grade do Festival Internacional de Munique, atraindo novos holofotes para Gomes. Em 2005, ele brilhou nas telas da Mostra Un Certain Regard de Cannes com "Cinema, Aspirinas e Urubus"; quatro anos depois, passou por Veneza com "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo", codirigido pelo cearense Karim Aïnouz; em 2017, concorreu ao Urso de Ouro da Berlinale com o quase épico "Joaquim". Este ano, esteve em San Sebastián com "Dolores" (codirigido por Maria Clara Escobar, exibido na Première Brasil e na Mostra de São Paulo, e lançou uma minissérie na HBO MAX, "Máscaras de Oxigênio (Não) Caírão Automaticamente".
A produção que leva ao Canal Brasil é apoiada numa reflexão contra a intolerância e no talento de Kika Sena, que encarna sua protagonista. Arte-educadora, diretora teatral, atriz, poeta e performer, Kika vive Paloma, uma mulher trans que trabalha como agricultora, colhendo mamões. Seu maior sonho é se casar na igreja, com seu namorado Zé (Ridson Reis). Eles já vivem juntos, e criam uma filha de 7 anos chamada Jenifer (Anita de Souza Macedo). O padre, porém, recusa seu pedido para deixá-la subir ao altar vestida de noiva. Só que Paloma não vai desistir de realizar seu sonho.
"Esse é um filme romântico sobre alguém em uma jornada de autoafirmação", disse Gomes ao Correio da Manhã, na época que tirou "Paloma" do forno. "Nossa personagem tem uma personalidade dócil e uma enorme força de trabalho. Em uma sociedade capitalista e que funciona de uma forma binária, o corpo de Paloma é útil para a produção de riqueza, no trabalho diário na fazenda de mamões. Agora, no momento da construção de uma subjetividade, Paloma não está nos conformes da sociedade. Hábil para trabalhar, mas inapta para sonhar. Essa é a discussão que o filme traz. Filmamos em pleno processo de eleição, em 2018. Era um Brasil prestes a escolher um novo presidente. De lá para cá, esse país se mostrou mais intransigente e violento com os direitos das minorias, se observar a maior quantidade de casos de violência contra a população LGBTQIAPN . Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a ANTRA, foram 175 casos em 2020 - 41 % a mais do que o ano anterior. Os casos só aumentam de ano a ano. A sociedade brasileira cada dia segrega mais. Somos, infelizmente, uma sociedade que se recusa a aceitar o outro com suas diferenças".
Na TV aberta, a pedida cinéfila desta segunda está na "Tela Quente" da Globo, que vai exibir o irônico "Ficção Americana" (2023) depois da novela das 21h. A direção do cineasta estreante Cord Jefferson (um prolífico roteirista de séries de TV e streaming) se deleita no timbre satírico do romance "Erasure", de Percival Everett. Indicado a cinco Oscars, essa ácida comédia de tintas políticas ganhou o prêmio de júri popular do Festival de Toronto, uma láurea que define futuros sucessos. Inédito em nossas salas de projeção, a produção traz Jeffrey Wright (dublado aqui por Duda Ribeiro) no papel do misantrópico Thelonious Ellison, professor de Literatura e escritor de pouca notoriedade. O boom de romances sobre causas raciais e pautas identitárias fazem com que ele escreva um livro ferocíssimo, fingindo ser um ex-presidiário que investe num relato de autoficção. O êxito de sua fake novel tira sua paz no momento em que ele reconfigura sua vida afetiva. É um aríete antirracista.