Canção inédita e série documental revisitam a trajetória meteórica da banda que desafiou a ditadura e vendeu mais que Roberto Carlos
Cinquenta anos depois do fim abrupto do Secos & Molhados, parte dos integrantes da formação original volta a se encontrar em estúdio para a gravação da faixa "Ouvindo o Silêncio", composição inédita de Gerson Conrad e Paulo Mendonça interpretada por Ney Matogrosso e Conrad, que ganha videoclipe e encerra a série documental "Primavera nos Dentes – A História do Secos & Molhados". A produção, dirigida e roteirizada por Miguel De Almeida e produzida por Marcelo Braga, estreou nesta sexta-feira (31) no Canal Brasil e tem reprise neste fim de semana, com exibição semanal dos quatro episódios.
A gravação de "Ouvindo o Silêncio" reuniu Ney, Conrad, Emilio Carrera (piano) e Willy Verdaguer (baixo), recriando no estúdio a atmosfera poética e provocadora que marcou a sonoridade do grupo nos anos 1970. Carrera e Verdaguer, que integraram a formação em 1973 e 1974, assinam o arranjo e direção musical da faixa. A impossibilidade de regravar os clássicos originais por questões de direitos autorais levou os músicos a criar novas composições inspiradas na estética da banda.
A série documental mergulha na trajetória apoteótica e contraditória de um grupo que, em apenas dois anos de existência, revolucionou a música brasileira e os padrões de comportamento, abrindo o debate sobre liberdade e questões de gênero em plena ditadura militar. Formado em 1972 por Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo, o Secos & Molhados surgiu misturando poesia, performance teatral e provocação estética numa época em que a censura cerceava qualquer manifestação artística considerada subversiva. A imagem de Ney exibindo na televisão um corpo andrógino, sem definição de gênero, tornou-se símbolo de resistência cultural e artística contra o conservadorismo da época.
O sucesso comercial do grupo foi tão meteórico quanto inesperado. Em pouco mais de um ano, a banda vendeu um milhão de discos, lotou ginásios por todo o país e superou Roberto Carlos em vendas, transformando-se no maior fenômeno da indústria fonográfica nacional. O êxito da banda incomodou o regime, que tentou censurar suas apresentações e letras. A série revela como o Secos & Molhados transformou arte em ato político, desafiando simultaneamente a repressão militar e os padrões estéticos estabelecidos pela indústria cultural.
A produção não esconde as contradições e tensões internas que levaram ao fim precoce do grupo em 1974. O terceiro episódio aborda diretamente o desgaste criativo e as disputas que culminaram no rompimento entre os integrantes, particularmente as desavenças entre Ney e João Ricardo. Depoimentos de Ney, Gerson e convidados como Moracy do Val, Cláudio Tovar e Charles Gavin reconstroem os bastidores das turnês exaustivas e as divergências que tornaram insustentável a continuidade da banda no auge do sucesso. O fim do grupo é apresentado como a consequência inevitável do choque de personalidades artísticas fortes sob um contexto de pressão extrema.
A influência do teatro de vanguarda na formação estética do Secos & Molhados ganha destaque especial na série, que mostra as conexões do grupo com artistas como José Celso Martinez Corrêa e Noilton Nunes. Essa matriz teatral explica a dimensão performática das apresentações, que iam muito além da execução musical e transformavam cada show em experiência sensorial completa.
Com depoimentos de Helena Ignez, Roberto Frejat, Ana Cañas e outros artistas contemporâneos, a produção da Santa Rita Filmes demonstra como o legado do Secos & Molhados atravessou gerações e continua influenciando a música brasileira.
O episódio final, que promove o reencontro dos músicos após meio século, traz reflexões sobre o impacto cultural duradouro do grupo. A ausência de João Ricardo, que não participa da reunião, marca simbolicamente as feridas ainda não cicatrizadas.
"Primavera nos Dentes" teve sessão de pré-estreia durante a Mostra de SP e chega num momento em que o Brasil volta a discutir censura, liberdade artística e diversidade, tornando a história do Secos & Molhados relevante e atual. A série não apenas documenta um fenômeno musical, mas resgata a memória de um período em que a arte foi trincheira de resistência contra o autoritarismo.