Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Soul' esquenta a tela da Globo

Chancelado por Cannes em meio à pandemia, 'Soul' pede passagem à TV aberta, na Tela Quente da Globo nesta segunda | Foto: Divulgação

O bem que a "Tela Quente" fez à educação cinéfila do povo brasileira desde sua estreia, em 1988, maldade alguma de Odete Roitman ofusca, sobretudo quando a sessão de filmes mais pop da TV aberta deste país ataca de animação... e logo uma das mais cools que a Disney já tirou de suas pranchetas: "Soul". Lançado em 25 de dezembro de 2020, em plena pandemia, sob a chancela da logomarca do Festival de Cannes (grife de excelência estética), diretamente no streaming, esse filmaço não teve espaço em salas de exibição, por culpa dos confinamentos inerentes à covid-19.

Apesar disso, não precisou do circuito para virar um fenômeno na web, atraindo uma multidão de olhares (e de potenciais assinantes) para a plataforma digital Disney onde gerou boca a boca dos mais plurais. Ganhou até Oscar. Foram dois, aliás. Um veio pela categoria trilha sonora original (dado a Trent Reznor, Atticus Ross e Jon Batiste). O outro, o de Melhor Longa de Animação, coroou uma artesania que será apreciada hoje na Globo, com transmissão (dublada) às 22h25.

A saga de um jazzista que desencarna às vésperas do show de sua vida, indo parar em um plano espiritual de almas em busca de propósito, abre acaloradas discussões sobre o sentido da arte e vida após a morte, além de instigar as redes sociais com um debate acerca da adequação (ou não) daquela trama ao público infantil. Um crítico português, Jorge Pereira Rosa, editor da revista C7nema, chegou a escrever que a Pixar, o estúdio ligado à Disney responsável pela animação, "não tem roteiristas e, sim, psicólogos", uma vez que os longas-metragens da empresa por trás de hits como "Toy Story" mais parecem uma sessão de análise. Entre polêmicas variadas, a aventura metafísica dirigida por Pete Docter e Kemp Powers atrai fãs por outro veio, que não o da reflexão existencial ou o de sua excelência na forma: o veio musical. Seu protagonista, o pianista Joe (interpretado por Jamie Foxx num estonteante trabalho vocal), é um aspirante a Thelonious Monk que orgulha-se de ter na música sua principal paixão. Nessa sua devoção ao piano, ele permite a seus produtores musicais a chance de revisitar ícones do jazz, isso já na trilha sonora original, composta por Trent Reznor e Atticus Ross, com arranjos de Jon Batiste, marcada por melodias como "Epiphany".

Ouve-se Charles Mingus ("Things Ain't What They Used to Be") e Herbie Hancock ("Body and Soul") ao longo do périplo de Joe, além de "Subterranean Homesick Blues", de Bob Dylan, "Apple Tree", de Erykah Badu, e "We Get Along", de Sharon Jones & The Dap-Kings. O próprio arranjador, Jon Batiste, solta a voz (em duo com a cantora Celeste) uma das músicas: "It's All Right".

Sua originalidade dramatúrgica é notável e vem da forma como "Soul" estuda - quase que filosoficamente - a busca por um sentido no dia a dia. Na trama, quando Joe (dublado no Brasil pelo ator Jorge Lucas) passa para um plano onde só existem almas, ele se recusa a aceitar o que aconteceu e insiste em voltar à Terra, sendo incumbido da missão de ajudar uma alminha que se considera sem propósito: 22, interpretada pela comédia Tina Fey e aqui (bem) dublada por Carol Valença. No périplo para reaver a chance que parece perdida, Joe e 22 voltam à esfera dos mortais mas caem em corpos errados. Ele cai na bola de belo de um gatinho serelepe e ela fica com o corpo humano do músico. Nessa vinda, eles passam por uma travessia de iluminação na qual buscam uma razão para suas vidas, numa narrativa em que os realizadores exploram todo o requinte de uma direção de arte centrada no dia a dia de Nova York. O plano transcendente, jamais associado à ideia de Céu, tem figuras que brincam com formas geométricas: esferas e triângulos, com fractais na representação do firmamento e retângulos simbolizando passagens entre mundos, numa metáfora do próprio cinema, muito comum à Pixar. No elenco original, a brasileira Alice Braga se junta à trupe protagonizada por Foxx e Tina Fey, que inclui ainda o apresentador de TV Graham Norton e a atriz Angela Bassett, responsável por viver a diva do jazz Dorothea Williams, cuja voz aqui é a da cantora Luciana Mello. Sua exibição esta noite é um golaço da Globo.