Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

'Brilho Eterno' chega à maturidade

Laureado com o Oscar de Melhor Roteiro, 'Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças' é um tratado do amor ultrarromântico | Foto: Divulgação

Mubi resgata a história de amor sci-fi estrelada por Kate Winslet e Jim Carrey que fez de Michel Gondry um cineasta cult, egresso de uma fase dedicada a videoclipes de prestígio

Correndo mundo com o longa-metragem de animação "Maya, Me Dê Um Título", que lhe valeu o troféu Urso de Cristal na última Berlinale, o francês Michel Gondry pode voltar ao festival alemão, em fevereiro de 2026, com uma ficção musical chamada "Golden". O longa-metragem se inspira em memórias do músico Pharrell Williams de sua infância em Venice Beach, entre os anos 1970 e 80. A argamassa desse projeto com a Da'Vine Joy Randolph, Janelle Monáe e Tim Meadows, é a recordação, tema que o cineasta domina como poucos, a se destacar o filme que, a um só tempo, é seu maior sucesso e seu grande fardo: "Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças" (2004). Recém-chegado à maturidade, esse cult, coroado com o Oscar de Melhor Roteiro, acaba de estrear na grade da plataforma Mubi. Ele dividiu águas para Gondry.

"Venho do videoclipe. Quando a gente fazia filmes musicais, no passado, havia televisão. As pessoas tinham o hábito de parar por horas... uma hora que fosse... para ver os filmes que fazíamos para músicas que viraram hit com a preocupação de não deixar a forma plástica daquelas narrativas ultrapassar a beleza da história narrada nas letras. Hoje, as pessoas assistem a clipes no YouTube, como querem. Não tem mais espaço pra reverenciarem as tramas que poderiam ser montadas a partir de canções. Já 'Brilho Eterno...' foi muito importante. Ele me ensinou que o problema de um artista é você reverter um fracasso, não, um sucesso que se sustenta por tanto tempo. O que existe é um desafio para que eu faça um filme mais falado do que ele", disse Gondry, ao Correio da Manhã, na Berlinale, sem deixar para atrás a evocação de seu passado na Era MTV com clipes sublimes como "Human Behaviour", com Björk.

Macaque in the trees
Michel Gondry, cineasta francês | Foto: Rodrigo Fonseca

Já no www.mubi.com, "Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças" narra o amor bem embolado do cartesiano desenhista Joel Barrish pela serelepe livreira Clementine Kruczynski, tendo Montauk como plataforma de um "vou de volta" de quereres. Com um faturamento estimado em US$ 74 milhões, a produção de US$ 20 milhões repaginou o talento dramático de Jim Carrey (Barrish) e deu a Kate Winslet o papel mais pop de sua carreira depois de todo o seu êxito como Rose, em "Titanic" (1997).

Batizada a partir de um trecho da epístola "De Heloísa para Abelardo", escrito em 1717 por Alexandre Pope (1688-1744), "Eternal Sunshine Of The Spotless Mind" transformou a canção "Everybody's Gotta Learn Sometime", do Beck, num ícone do cancioneiro corta-pulso dos anos 2000. Nova York foi a locação central, o que já é um mimo para o olhar, além de Nova Jersey, ambas fotografadas em cores não saturadas por Ellen Kuras.

Barrish é um ilustrador com o peito devastado pelo egoísmo alheio. Clementine é uma vendedora, que usa tinta azul no cabelo. Ela parece livre. Já ele vive todo casmurro, preso no cadafalso para a autodepreciação. Olham-se, impressionam-se, tentam(-se), sem saber que é tudo segunda vez. Ela, cansada dos embates diários da rotina a dois, procurou a Lacuna Inc., uma empresa especializada em zerar todos os registros que temos de quem nos cansa. Ela apaga Joel, sem se importar com qualquer efeito colateral da parceria desfeita. Ele, magoado ao saber que foi deletado da cabecinha cheia de caraminholas dela, busca o mesmo tratamento, com o inventor do cacareco que apaga vivências, Dr. Howard Mierzwiak (Tom Wilkinson, monumental em cena).

Apesar dessa tentativa, como o miocárdio é um músculo que distende em dupla - no beijo da fricção com o vetor da aceleração -, o apagamento sai errado. O inconsciente maroto de Barrish quer preservar Clementine, pois a arte de gostar exige saber olhar, saber ouvir, saber esperar a zanga passar, tomar pílulas de risco e gozar de mãos dadas. E, nisso, o Acaso é rei. Dizem que o Acaso é o pseudônimo que Deus usa quando não quer levar crédito por seus acertos. Mas o crédito aqui é de Gondry, que arriscou ao apostar na ousadia... e em dois atores que se olham na matemática da troca. "Meet me in Montauk", frase trocada pelos pombinhos Barrish e Clementine, virou um sintagma amoroso em Hollywood, celebrizando o filme e a percepção de abraço é abrigo.

"Antes de 'Brilho Eterno...', eu fiz um longa chamado 'Natureza Quase Humana', que não fez sucesso, em parte por eu não ter percebido que os personagens precisavam de mais confecção do que a forma. Era necessária mais reverência àquelas figuras sobre as quais falávamos e menos obsessão com a forma", explica Gondry. "Dali eu entendi o que deveria tentar fazer nos filmes seguintes. Ali eu mudei os caminhos".