É dia de conhecer quem vai concorrer ao Leopardo de Ouro de 2025, de 6 a 16 de agosto, sob o crivo do júri presidido pelo diretor cambojano Rithy Pahn, na Suíça, em meio à euforia cinéfila do Festival de Locarno, que anuncia nesta terça-feira (8) as atrações de sua 78ª edição. O Brasil já saiu coroado com os troféus mais disputados desse evento no passado, com vitórias de "Terra Em Transe" (em 1967), "Fantasma Neon" (em 2021) e "Regra 34 (em 2022).
Essa maratona de curtas e longas-metragens pertence ao clube seleto das mostras competitivas de maior relevo do planisfério audiovisual, ao lado de Roterdã, Berlinale, Cannes, Veneza e San Sebastián. Essa é a linha de frente do Velho Mundo, sendo que as Américas contam com o TIFF, em Toronto, no Canadá, como seu farol de excelências fílmicas mais concorrido do Presente, alvo da atenção plena da Academia de Hollywood, que entrega o Oscar. Têm peso considerável também três festivais já maduros dos EUA: Sundance, Tribeca e Telluride. Em geografias brasileiras, temos Gramado, a Mostra de São Paulo, Brasília e o Festival do Rio.
Locarno já apontou muitas trilhas para a arte, mas viveu tempos difíceis, no fim dos anos 2010, quando deixou de arrebatar a mídia, por escolhas curatoriais burocráticas. Em 2021, essa fase de vacas magras acabou, com a escalação do crítico de Zurique Giona A. Nazzaro como novo diretor artístico. Capaz de citar a filmografia semiológica mais radical de Jean-Luc Godard (1930-2022) com a mesma paixão com que fala de "American Ninja" (1985), ele trouxe um novo colorido para a programação.
Não por acaso, o longa vencedor da edição que inaugurou a atual (e elogiadíssima) curadoria de Giona foi um thriller de artes marciais: "A Vingança É Minha, Todos os Outros Pagam em Dinheiro" ("Seperti Dendam, Rindu Harus Dibayar Tuntas"). Vinda da Indonésia, essa fita, uma joia, não teve espaço em circuito por aqui, mas acaba de entrar na Netflix, ao alcance de um clique.
Fora a presença no streaming, a produção volta a ser debatida, Europa adentro, ao passo que uma nova lavra de candidatos ao Leopardo se prepara para rugir. Ecos de Bruce Lee (1940-1973) ampliam as taxas de adrenalina que rega esse longa. Dirigido por Edwin, um designer e cineasta de 47 anos que (como todo grande artista de sua cidade, Surabaya) usa apenas o prenome, "A Vingança é Minha..." é um thriller de kung fu (e outras lutas) nos moldes dos clássicos de Hong Kong. Lembra Jackie Chan, parece com os clássicos de Michelle Yeoh e evoca o cult "O Dragão Chinês" (1971). Seu diferencial em relação a seus congêneres está na maneira como a trama detona o machismo e todas as práticas sexistas. Começa pelo detalhe de que um dos personagens centrais, o feroz lutador Ajo Kawi (Marthino Lio), imbatível nos socos e nos pontapés, estar enfrentando uma impotência sexual incontornável. Nem ervas, nem mandingas resolvem sua situação.
"Há uma tradição de filmes de artes marciais que revisitaram o conceito de Bem e de Mal por meio de uma reflexão sobre justiça social, em que as lutas eram uma forma de corrigir uma série de contradições inerentes à opressão social. Nos anos 1980 e 90, quando minha geração teve acesso a essas histórias de batalha, descobrimos uma mirada política que nos permitia vislumbrar uma saída para a realidade de governo que nos cerceava", disse Edwin ao CORREIO DA MANHÃ em Locarno, dias antes de sua vitória, referindo-se à ditadura do general Hadji Mohamed Suharto (1921-2008), vigente de 1967 a 1998, em terras da Indonésia.
Sua fonte foi um livro homônimo de Eka Kurniawan do qual extraiu a desconstrução física e moral dos gêneros narrativos e da representação do código da masculinidade. "Vengeance Is Mine, All Others Pay Cash" é o título usado pelo cineasta para a carreira internacional de seu longa, que pode se estabelecer como um campeão de bilheteria, à força de sua narrativa de ação. "Na diversão, há espaço para a educação contra a exploração", diz o diretor.
Indicado ao Urso de Ouro da Berlinale de 2012 com "Postcards From The Zoo", Edwin diz que a Indonésia tem uma produção cinematográfica pop vasta, com filmes cujo orçamento gravita entre € 500 mil e € 2 milhões, lotando salas. "Até filme de super-herói a gente faz", gaba-se.
Construído a partir de uma montagem tensa, que torna ainda mais dinâmicas suas sequências de pancadaria, com ângulos de matar Van Damme de inveja, "A Vingança É Minha, Todos os Outros Pagam em Dinheiro" é uma junção de melodrama e thriller. Em seu enredo, Ajo Kawi quebra os ossos alheios por dinheiro, trabalhando para um chefão do crime, cujos desafetos ele extermina a soco. Numa missão em uma empreiteira, ele esbarra com uma jovem tão furiosa e letal quanto ele: Iteung (Ladya Cheryl). Os dois têm uma luta mortífera da qual Kawir sai todo quebrado, mas vencedor. Obcecado com a mulher que, por pouco, não o fez beijar a lona, ele vai atrás dela e os dois se apaixonam e se casam, apesar de o problema dele persistir.
Este ano, Locarno vai homenagear as estrelas Lucy Liu, Emma Thompson e (o já citado) Jackie Chan, além da figurinista Milena Canonero e o diretor Alexander Payne.