Mesmerizando plateias com a revisão de fatos e feitos de Ney Matogrosso, "Homem Com H" se candidata a blockbuster tornando-se um ímã de elogios para seu ator, Jesuíta Barbosa, abrindo o interesse da cinefilia nacional por seu histórico nas telonas. O marco zero de sua excelência se fez notar há exatos 12 anos, com "Tatuagem", que hoje bate ponto no streaming, com mais destaque, à força do êxito recente do astro em circuito.
Exibido na abertura do Mix Brasil de 2013, o cult do diretor pernambucano Hilton Lacerda foi laureado com o Kikito de Melhor Filme no Festival de Gramado e ganhou o Prêmio da Crítica (votado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica - Fipresci) no Festival do Rio, de onde saiu ainda com o Prêmio do Júri e o troféu Redentor de Melhor Ator, dado para... Jesuíta. É possível vê-lo via Prime Video (Amazon) e na plataforma Reserva Cultural, que lançou ainda o longa posterior de Hilton, o thriller "Fim de Festa" (2019).
Do fino da fossa à apoteose da saudade, do desabafo amoroso à marchinha, da ladainha romântica à quaresma pós-Quarta de Cinzas, duas canções servem de bússola à "Tatuagem". Arquitetado como sinestesia a partir da fotografia sensorial de Ivo Lopes Araújo, o longa foi responsável por consagrar um dos roteiristas mais aclamados do país, Hilton Lacerda, como diretor de ficção. Em seu eixo de abertura, ouvimos a canção "Esse Cara", e, em seu fecho, nós somos brindados com "Bandeira branca". No trânsito sensorial entre uma música à outra, numa reconstituição de Pernambuco em 1978, nos resquícios sombrios do governo militar, uma paixão de opção declarada pela igualdade vai sendo costurada. Ao mesmo tempo, vai se desenhando um painel de formas de resistência à repressão (ditatorial, sexual, em suma, ideológica). Nele, uma trupe teatral, alocada em um cabaré, o Chão de Estrelas, serve como um bunker para a liberdade a fim de combater a opressão fardada no governo, ao mesmo tempo em que o diretor/mentor do grupo se joga nos braços de um soldado recém-integrado às Forças Armadas.
Quem mais (e melhor) resiste aos milicos (e a todo o resto), no recorte histórico/estético de Lacerda, são as artes. De um lado, a arte de representar (na forma do teatro, da poesia e do cinema) e a arte de amar (na forma fálica de um aríete em marcha contra a hipocrisia). No casamento desses dois hemisférios, celebrado em um gesto político, surge um longa muitas vezes rotulado em seu lançamento de "filme-gay", mas que - numa carinhosa cartografia da homoafetividade - transcende bandeiras. O corpo é seu leme, seu norte. O corpo como estandarte da vida, em suas planícies e falésias, seus desastres e seus carnavais.
Incorporando Maria Bethânia, de microfone em punho, Clécio Wanderley (Irandhir Santos), ator, dramaturgo e cabeça do clã de artistas responsável pela ocupação do Chão de Estrelas, amplia a libido da Recife dos anos 1970 ao som de "Esse cara". Nos versos "Ele está na minha vida/ porque quer/ eu estou pro que der vier", Clécinho dá sinal verde para que desejos tatuados em corações empapuçados de cerveja ganhem forma e suor. Entre eles o desejo que sente por um jovem recruta, Arlindo, vulgo Fininha, interpretado por Jesuíta Barbosa. Os beijos trocados por eles nas madrugadas pavimentam uma relação sólida em um mundo em transformação: uma cidade que, feito um espelho do Brasil, reflete as instabilidades políticas dos anos de chumbo. Um mundo desafiado pelas irreverências de Clécio e seus atores em números musicais como a provocativa "Canção do Cu", polca que se destaca cheia de som e de fúria na trilha de Dj Dolores.
Mas o bem-querer de Clécio por Fininha é apenas uma de muitas relações cimentadas por Lacerda numa narrativa interessada em conjugar o verbo gostar (de alguém) sob diferentes desinências. Entre elas estão a paternidade (pós-moderna) e a amizade, representada no cabo-de-guerra coberto a plumas entre Clécio e a diva do cabaré, Paulette (vivido por Rodrigo Garcia, em um brinco de atuação).
Xará do thriller dirigido em 1981 por Bob Brooks com Bruce Dern e de um drama alemão de Johannes Schaaf, a "Tatuagem" audiovisual de Lacerda, retocada pela atuação devastadora de Irandhir, demarcou (uma vez mais) o (alto) relevo da linhagem recifense no cinema nacional. Foi abençoada com o Kikito de melhor filme em Gramado, quatro troféus Redentor no Festival do Rio (incluindo o prêmio Fipresci, da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica) e com a fama de ter esgarçado as fronteiras da discussão sobre identidade sexual na tela para fora das entradas e bandeiras de guetos e nichos. E, quando vem "Bandeira branca", gemido por Dalva de Oliveira como um fado, sabe-se que Lacerda pede paz ao esquadrinhar nossa capacidade de perder e de nos regenerarmos na bitola Super-8 do amor.