É tempo de Berlinale. A 75ª edição do festival alemão começa nesta quinta, com a projeção de "Das Licht" ("The Light"), de Tom Tykwer, e, com sua inauguração, sucessos recentes de suas competições passadas voltam ao holofotes, sobretudo ao streaming. É o caso de "What Do We See When We Look at the Sky?", que ganha a ribalta da Mubi quatro anos depois de passar pela disputa pelo Urso de Ouro e arrebatar o Prêmio da Crítica, atribuído pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci).
Existe um hábito antigo no Brasil, meio como numa crendice de estradas, de se usar frases de instantânea beleza em para-choques de caminhões, incluindo aí um aforismo de Victor Hugo: "A palavra, como se sabe, é um ser vivo". "What Do We See When We Look at the Sky?" traz uma narração aforísmica cheia de frases como ao autor de "Os Miseráveis". Talvez porque, em certa medida, a produção georgiana apresentada na Berlinale 2021 - onde injetou lirismo em veredas esturricadas de realismo - seja também um para-choque para a Scania (famosa marca de caminhões) do sobrenatural. Parte de uma metonímia literária para se abrir à invenção mais desvairada.
Seu diretor, Alexandre Koberidze, fez um filme nas raias da magia, onde o inusitado dita as regras das relações interpessoais, apostando na força da fotografia de Faraz Fesharaki para explorar o colorido (quase sempre de uma aparência sépia) de espaços abertos e de ambientes íntimos.
É uma narrativa que valoriza ao máximo a geografia a seu redor, mas sem abrir mão dos verbos, dos substantivos, de raros advérbios e adjetivos, tratando a fala com especial atenção, reconhecendo-a como parte sinestésica da dinâmica cinemática, pelo efeito do som, pelo efeito poético. Koberidze assume, já nas primeiras cenas, que a mais aconchegante casa que uma palavra pode encontrar é a literatura. Tanto é que um poema do brasileiro Paulo Leminski poder ser um farol preciso para iluminar a floresta de signos que o diretor georgiano criou a parir de um livro aberto: "Leite, leitura / letras, literatura, /tudo o que passa, /tudo o que dura /tudo o que duramente passa /tudo o que passageiramente dura /tudo, tudo, tudo /não passa de caricatura /de você, minha amargura /de ver que viver não tem cura". Tampouco o cinema, como comprova a potente seleção desta Berlinale e as recentes incursões da Geórgia no cinema, em especial as criações da cineasta Dea Kulumbegashvili ("April").
Tudo o que se passa em "What Do We See When We Look at the Sky?" é responsabilidade de um livro que cai no chão, abrindo uma progressão aritmética de acontecimentos, muitos deles na chave do querer, do beijo na boca, do beijo que não cabe em bocas que não se tocam. A partir do desencontro - forçado por um evento metafísico digno de Luis Buñuel - de um quase casal, um corriqueiro enredo de boy meets girl vira uma árvore de signos, como vem sendo a tônica de alguns grandes filmes da Geórgia nas telas.
Basta pensar no poderoso "Beginning" ("Dasatskisi"), da supracitada Dea Kulumbegashvili, ganhador da Concha de Ouro do Festival de San Sebastián de 2020. Aliás, essa investigação contemplativa e silenciosa sobre opressão feminina também está em cartaz na MUBI. Tal qual fez a estreante Dea, Koberidze também envereda por trilhas místicas, embora não necessariamente bíblicas. Silêncio não é, no caso dele, uma virtude, em parte porque existe no realizador de "Colophon" (2015) uma necessidade de se ressignificar a palavra no audiovisual. Seu estonteante "What Do We See When We Look at the Sky?" ("Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt?" no original) é um bálsamo de lirismo. Sua forma de narra se impõe como um analgésico para as enxaquecas de uma Eurásia pós-pandêmica, ao apostar numa dose de realismo mágico. Só o quebra-cabeça gerado pela troca de aparências de seus protagonistas já rende encanto suficiente para alimentar o interesse por sua investigação acerca da nossa habilidade de nos deixar levar pelo encantamento.
Depois de "Let the Summer Never Come Again" (2017), Koberidze aposta numa suspirante história de afagos que não pode se realizar por conta da Natureza. Na trama, um casal de jovens, Lisa e Giorgi, que se esbarra na rua, e deixa cair um livro, fica encantado e marca um encontro. Os dois vão para um date mas não conseguem se ver. O motivo: da noite para o dia, eles mudaram de forma. É uma espécie de feitiço, no efeito do abrir do livro, que muda tudo o que se passa naquele mundinho onde vivem, refletindo as transformações sociais e políticas daquela nação. Um mundinho apaixonado por futebol, mas também pelo ato de ler. Vinhetas, legendas e um narrador onisciente conversam conosco, dando a essa fábula uma aparência de hipertexto da web, unindo tradição e contemporaneidade. É algo similar ao que se viu no monumental "Your Name" (2016), de Makoto Shinkai A diferença é que a animação japonesa tinha uma célula sci-fi. Já Koberidze é a antítese da ciência, é a causa que não se explica, mas se vive e se frui, na suspensão da descrença mais radical.
Vira e mexe, os georgianos aprontam das boas, como ele fez em seu estudo da habilidade que sua pátria ainda tem de superar o cinismo do dia a dia. Entre as 15 repúblicas reunidas sob a égide socialista da União Soviética, a Geórgia foi uma das principais potências cinematográficas do grande império audiovisual que fez do audiovisual um trampolim para ideologias, tendo permanecido cheia de som e de fúria nas telas mesmo com os rearranjos geopolíticos de seu território. Há cinco anos, o DocLisboa, um dos maiores festivais do mundo dedicados a estéticas do Real, com sede em Portugal, promoveu uma retrospectiva da terra de Koberidze, mapeando diretores autorais como Mikhail Kalatozov (ganhador da Palma de Ouro de Cannes, em 1958, por "Quando Voam as Cegonhas") e Serguei Paradjanov (realizador do premiado "A Lenda da Fortaleza Suram"). Revisitou-se ainda o legado de Nutsa Gogoberidze (1902-1966), a primeira mulher diretora da Geórgia a ganhar notoriedade global, conhecida por longas como "Bulba" (1930). "Minha Avó" ("My Grandma", 1929), uma sátira surreal da burocracia do jovem Estado soviético, dirigida pelo ator-diretor Kote Mikaberidze, é outro cult deles, com conexão direta ao trabalho de Koberidze em "What Do We See When We Look at the Sky?".
O www.mubi.com revisita a Berlinale em sua grade ainda com o documentário "Dahomey", da franco-senegalesa Mati Diop, laureado com o Urso de Ouro de 2024, e o espanhol "Alcarràs", de Carla Simón, que venceu o evento em 2022.