Quadrinista brasileiro de maior prestígio na Europa, no cenário das "bandas desenhadas" ou BDs (romances gráficos em álbuns de luxo), Marcello Quintanilha tem um lançamento a caminho das livrarias do Velho Mundo marcado para janeiro. "Eldorado" é a nova expressão das inquietudes de traço neorrealista do roteirista e ilustrador laureado com o troféu Jabuti por "Hinário Nacional" e por "Escuta, Formosa Márcia" - título ganhador ainda do troféu Fauve d'Or no Festival de Angôuleme, na França.
O site da editora belga Lombard define da seguinte forma seu novo trabalho: "Brasil, anos 50. Em Duque de Caixas, Hélcio e sua família vivem modestamente, mas com dignidade, graças à mercearia que têm. Mas ele e seu irmão Luiz Alberto sonham com um destino melhor. Luiz Alberto passa o tempo com a turma do bairro. Da pequena delinquência ao crime, há apenas um passo que o rapaz não hesita em dar. Hélcio, por sua vez, almeja a realização definitiva, o verdadeiro Eldorado: uma carreira de jogador de futebol profissional".
Inspirado livremente na vida de seu pai, Quintanilha se embrenha pelos balõezinhos do thriller. Na entrevista a seguir, o bamba das HQs, famoso também no cinema pela adaptação de seu cultuado "Tungstênio", antecipa ao Correio da Manhã detalhes desse seu novo flerte com as tramas policiais.
O que esperar de "Eldorado" e de que maneira essa nova HQ expande a sua estética neorrealista?
Marcello Quintanilha - Articular as premissas do neorrealismo em chave brasileira sempre me interessou grandemente. "Eldorado" mergulha no mesmo universo de "Luzes de Niterói" e poderemos reencontrar vários de seus personagens, desta vez, envolvidos em uma trama policial. A história parte de acontecimentos reais, reinterpretados no campo da ficção, aliados a uma recriação do mito do filho pródigo no seio da classe trabalhadora, abrangendo 25 anos da vida brasileira, do início dos anos 1950, até meados dos anos 1970.
Qual é a Caxias que se encontra nesse novo trabalho e como a Baixada espelha um Rio de outrora?
A Caxias presente no livro é a que se configurou em minha mente enquanto ouvia os relatos do meu pai sobre a região. Trata-se de uma Caxias imaginária, que busca recuperar o efeito que produzia em mim ao ouvir a narração dos fatos nas ocasiões em que ele se dispunha a narrar fragmentos da sua vida. Este sentimento se conjuga com as diversas concepções dos subúrbios eternizadas na literatura brasileira, repositório de uma série de coisas e valores dos quais parecemos estar completamente desconectados, mas que, em última análise, estão intimamente ligados ao que entendemos hoje como sociedade brasileira.
Quais são as referências geográficas do seu quadrinho e de que maneira a sua obra assume cidades como (co)protagonistas?
Além de Caxias, a Niterói dos anos 1950, e o Nordeste do país, nos anos 1970. As cidades são eixos dramáticos em si mesmas, sobretudo quando se vive fora dos grandes centros, como aconteceu comigo durante tantos anos, e toda a mobilidade do indivíduo está condicionada a enclaves de deslocamento, como o cruzamento diário da Baía da Guanabara, por exemplo. Sob esta ótica, é impossível escapar a uma relação íntima, simbiótica, com o espaço urbano, que acaba se impondo na narrativa, reivindicando para si um rol de protagonismo do qual nunca abro mão.
O que o quadrinho ainda te representa como um espaço de surpresa e de invenção?
O quadrinho, como todas as outras linguagens, é um manancial inesgotável de manifestações e percepções, ao ponto de me ver constantemente obrigado a reaprender a desenhar — consequentemente, a narrar — a cada novo álbum, derivando em uma dinâmica de investigações e experimentações interminável. No caso de "Eldorado", o retorno ao registro gráfico de "Luzes de Niterói" representou também uma dilatação desse conceito formal que seduziu de modo, digamos, peculiar.