Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Sombras do samurai

O quadrinista Julio Shimamoto | Foto: Divulgação

Xiloshima é o nome que um titã dos quadrinhos latino-americanas, Julio Shimamoto, hoje com 86 anos, inventou para classificar o atual método de expressão - meio artes plásticas, meio artes gráficas - que tem desenvolvido em sua casa, em Jacarepaguá, longe dos compromissos com as graphic novels e revistinhas mensais que fizeram dele uma lenda no mercado editorial.

"Atualmente, pinto a face de azulejos brancos com tinta preta à base de água e, após secagem, eu as raspo com ponta de prego ou espetinho de churrasco, produzindo desenho assemelhado ao xilo. É um método que dispensa madeira. Após escanear a imagem, eu a removo, por lavagem, e reutilizo o azulejo ou cerâmica para novos trabalhos", explica o bamba do desenho em P&B, nas raias do expressionismo.

 

Julio Shimamoto: 'Minha arte é basicamente ocidentalizada, sem influência oriental'

Mistura de artes plásticas com artes gráficas, as xiloshimas são pintadas na face de azulejos brancos com tinta preta à base de água e, após secagem, as imagens são raspadas com ponta de prego ou espetinho de churrasco, produzindo desenho assemelhado ao xilo | Foto: Divulgação

Nascido em 13 de maio de 1939 em Borborema, interior de São Paulo e radicado há décadas no Rio, Julio Shimamoto é orgulhoso de suas raízes nipônicas. "Papai, Kioichiro, nasceu na província de Wakayama, e mamãe, Chiyoko, nasceu em Osaka. Conheceram-se no Brasil e aqui casaram", conta.

Sua lavoura artística, iniciada na década de 1950, passou pela Publicidade e emplacou, nas HQs, obras-primas como "Volúpia", "Sombras", "Claustrofobia" (com Gonçalo Junior), "O Lobisomem Errante" e "O Ditador Frankenstein". Seu trabalho mais recente, "Sangue & Terror", entrou à venda faz pouco, celebrando suas oito décadas e meia de vida. Segundo ele, esse mix de histórias traduz sua narrativa, numa evolução histórica, "pela variedade de estilo gráfico, sempre focado em tema gótico, terrorífico".

Sua forma autoral de meter medo alimentou o imaginário de muitos artesões do quadrinho e da prosa, como é o caso de Lourenço Mutarelli, autor de "O Cheiro do Ralo" e "A Confluência da Forquilha":

"Shimamoto, o grande Shima, tem um desenho maravilhoso. Desde novo, fui impactado por seu trabalho", explica Mutarelli. "Sua arte-final é sempre inovadora e surpreendente. Tenho profundo carinho e respeito por esse homem, que segue criando e experimentando".

Esse gerúndio glorioso de que fala Mutarelli é o alvo do papo a seguir entre Shima e o Correio.

O que mais lhe apaixona na arte dos quadrinhos?

Julio Shimamoto - Sempre fui fascinado por quadrinhos, desde a minha infância no Sertão, quando papai trazia de suas viagens exemplares de "O Gibi" e "Globo Juvenil". Mesmo sem saber ler, as imagens dinâmicas de super-heróis me empolgavam demais, e o ato de fazer HQs é mais viciante, como afirmou certa vez o grande Alex Raymond, artista americano que imortalizou Flash Gordon. Ele disse que ser quadrinista é mais do que ser cineasta: por dirigir, ambientar, cenografar e também atuar no lugar dos personagens mais variados.

De que maneira o seu preto e branco evoca o sobrenatural?

Toda noite, quando andamos sozinhos numa rua mal iluminada, sentimo-nos apreensivos. Seria efeito da nossa infância povoada de assombrações, mulas sem cabeça ou lobisomens? O fato é: a escuridão é sempre associada ao pesadelo e a fatos sobrenaturais, sobretudo no sertão, onde passei grande parte da minha infância.

Que elementos sombrios formam o seu imaginário?

Além das superstições dos caipiras, as personagens de HQs e os filmes de terror enriqueceram o meu imaginário.

Do que o senhor tem medo?

De ficar cego ou ficar entrevado numa cadeira de rodas. Já a morte não me assusta tanto assim, pelo fato de papai ter me ensinado a não temê-la, para evitar que eu me tornasse um covarde.

O que ainda atrai o senhor no terror?

Especializei-me nessa temática forçado pelas editoras que publicavam esse material importado dos EUA, antes da proibição pelo macarthismo. As revistas de terror tinham um grande mercado, daí as editoras brasileiras decidiram contratar roteiristas e desenhistas para produzi-las. Só a Editora Outubro chegou a lançar simultaneamente quatro títulos mensalmente.

De que maneira as suas raízes japonesas se fazem notar na sua obra?

Minha arte é basicamente ocidentalizada, sem influência oriental.

Então o senhor não tem relação com mangás? Mas gosta de alguma?

Zero relação com mangá típico, daqueles personagens olhudos. Já no gekigá (HQ japonesa de estilo realista), sou grande fã de "Lobo Solitário", de Kazuo Koike com desenhos de Goseki Kojima.

Quando o senhor começou a trabalhar com desenho?

Estava quase com 16 anos quando comecei a trabalhar como estoquista no escritório da matriz das lojas Tecidos Buri e, ainda nessa idade, fui para o departamento de promoções da matriz das Lojas Sears, no bairro da Água Branca, como auxiliar de desenhista.

Qual foi o seu primeiro quadrinho profissional?

Meus primeiros quadrinhos foram sobre curiosidades brasileiras e HQs de mitologias universais, sob o título "Agora Sei Que...", criados especificamente para substituir o importado "Acredite Se Quiser" do (selo) "Ripley's", em fins de 1957, na Ed. Novo Mundo de Miguel Falcone Penteado. Saíam publicadas nas capas internas das revistas "Noites De Terror", "Mundo De Sombras" e "Gato Preto".

Qual foi o seu maior sucesso?

"Fidêncio, O Gaúcho", publicado no suplemento dominical infantojuvenil da Folha de São Paulo.

Como foi o seu trabalho com criação publicitária?

Trabalhei muitos anos em agências de publicidade, nacionais e multinacionais, embora a contragosto. Era bem remunerado como diretor de arte do setor de criação, e assim pude comprar minha casa e criar meus quatro filhos, confortavelmente. Hoje, sou aposentado.

O senhor desenha todos os dias, atualmente?

Não. Já faz alguns anos que desenho quadrinhos esporadicamente, por falta de motivação, mas gosto de produzir ilustrações avulsas, encomendadas ou não, buscando desenvolver técnicas novas. Gosto também de usar ferramentas e soldas elétricas, para produzir esculturas com folhas de latinhas descartadas ou chapas de zinco.

O senhor, que é considerado um rei no preto & branco, gosta de desenho colorido?

Só para capas de revistas, não aprecio quadrinhos coloridos. Só para não perder a mão, faço estudos avulsos em cores uma vez ou outra.

Quais são os seus próximos projetos?

Atualmente, não tenho nenhum projeto em pauta, mas sigo ativo, desenvolvendo ilustrações com técnicas inéditas. Esses trabalhos costumo veicular em fanzines de amigos, gratuitamente. São técnicas de acentuado claro-escuro que evoca estilo xilo.