Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Tardimania

Jacques Tardi no Salon du Livre de Paris | Foto: Divulgação

Livrarias europeias (e Amazons afins) andam com suas prateleiras de quadrinhos tomadas por Jacques Tardi, que, aos 78 anos, volta a mobilizar o mercado que renovou, na década de 1970, pela elegância de seu traço e a acurada reinvenção de episódios históricos do Velho Mundo. A publicação de "Du Rififi À Ménilmontant", pela editora Casterman, em novembro, renova uma das franquias de maior êxito de vendas de sua sexagenária carreira: a série Nestor Burma.

O detetive foi criado em 1943 pelo escritor Léo Malet (1909-1996) e, popularizado em mídias audiovisuais como a TV e o cinema (em filme com Michel Serrault), acabou ganhando uma releitura gráfica pelo traço de Tardi. Em 1982, o artista se uniu a Malet para desenhar o álbum "Brouillard Au Pont De Tolbiac", e explorou as peripécias do investigador até 2020. Uma das graphic novels que fizeram, "Brumas Sobre a Pont de Tolbiac", foi editada pela Zarabatana no Brasil. Em língua portuguesa, o desenhista ganhou novos holofotes em 2024, a partir do trabalho da editora Levoir ao publicar a personagem mais famosa do universo tardiano: Adèle Blanc-Sec, criada em 1976.

Chama-se o que Tardi lança de Banda Desenhada, ou BD. Esse é o nome que os europeus usam pra definir álbuns gráficos em quadrinhos, de luxo, em capa dura, que optam por narrativas de gênero (mistério, fantasia, sci-fi, faroeste) ou por aulas de História (cheias de poesia) e trilham caminhos que fogem do maniqueísmo. Nos EUA, quem dá as cartas nesse mercado é a Marvel e a DC, mas, na França, quem gira a roda são tramas adultas, calcadas em temas políticos, que dissecam mitos e biografam artistas. "Du Rififi À Ménilmontant" se instala nesse caminho.

Seu enredo carrega traços da literatura e do cinema noir da década de 1950. Em dezembro de 1957, Burma teve um caso grave de gripe, que ele tentou tratar com a última droga da moda dos laboratórios Manchol. Como não tem o hábito de desistir diante da adversidade, ele concorda em aceitar uma nova cliente: uma senhora burguesa que não tem medo de uma boa risada. Qual não é sua surpresa quando ela revela sua identidade: Madame Manchol! O que se segue é uma investigação dos bastidores dos laboratórios farmacêuticos, envolvendo muito dinheiro, é claro, e abuso de animais.

Redescoberto pelo público leitor brasileiro com a publicação de "Era a Guerra de Trincheiras", Tardi desfilou sua criatividade por periódicos como "Pilote", "L'Écho Des Savanes" e "Métal Hurlant" antes de formar uma legião de fãs com Burma e com Adèle Blanc-Sec, que hoje conquista a ala nerd lusitana. Entre nossos patrícios, a Levoir hoje edita joias do quadrinista como "O Demónio da Torre Eiffel" e "O Afogado com Duas Cabeças", estreladas por uma empoderada investigadora.

Quase 50 anos depois de seu lançamento, "Les Aventures Extraordinaires d'Adèle Blanc-Sec" preservou seu viço, sobretudo no colorido meticuloso (de Anne Delobel) supervisionado por Tardi, que renovou a gramática da chamada gaslamp fantasy na cultura pop. A HQ saiu lá fora em formato de álbum pela Casterman, e chegou a ser precedida de serialização em vários periódicos. Seu maior achado, fora o depuro visual dos desenhos, é a construção de uma heroína nada convencional, Adèle, uma escritora de ficção popular metida a Sherlock Holmes avessa à correção política, sem medo de seus desejos (nem de expor sua nudez). Na época de seu lançamento, Bécassine e Barbarella eram as principais figuras femininas da banda desenhada europeia, que andava inflacionada de tipos masculinos sem muita variação. Em 2010, Luc Besson levou Adèle às telas, com enorme sucesso de bilheteira, tendo Louise Bourgoin no papel principal.

Numa brincadeira com o jornalismo investigativo, as peripécias de Adèle Blanc-Sec se passam no mesmo universo ficcional de três histórias ilustradas anteriores de Tardi: "Adieu Brindavoine" ("Adeus, Brindavoine"), publicada em série em 1972 na revista de quadrinhos franco-belga Pilote nº 680-700; sua sequência direta, "La Fleur au Fusil" ("A Flor no Rifle"), um conto de dez páginas publicado pela primeira vez em 1974; e a graphic novel original de 1974 "The Arctic Marauder" ("Le Démon des glaces", ou "O demônio do gelo"). Tudo partiu de uma encomenda da Casterman por uma mulher aguerrida, que adentrasse num contexto de narrativas próximas à saga de Arsène Lupin.

Tardi revirou as entranhas de Paris, retratando a cidade antes e depois dos feitos da I Guerra Mundial. No álbum que consagrou sua sempre bem vestida diva da justiça, Adèle busca solucionar o mistério da aparição de um pterodátilo a partir de um ovo de dinossauro que mobiliza uma espécie de seita. O clima de tensão se fez presente mesmo nas páginas em que a verborragia de seu autor se excede.