Por: Affonso Nunes

Viviane Mosé celebra legado revolucionário de Gal Costa

Gal Costa firmou-se como voz da contracultura nos anos de chumbo | Foto: Reprodução


Poeta, psicanalista e filósofa encerra temporada 2025 do projeto Disconcertos analisando álbum duplo que marcou a contracultura brasileira nos anos de chumbo

O palco do Futuros – Arte e Tecnologia, no Flamengo, recebe nesta quarta-feira (10), às 19h, o último encontro da temporada 2025 do projeto Disconcertos. Desta vez, a poeta, psicanalista e filósofa Viviane Mosé conversa com o idealizador do projeto, Dodô Azevedo – filósofo, historiador, escritor e jornalista –, sobre "Fa-Tal – Gal a todo vapor", álbum duplo que Gal Costa lançou em 1971 e que se tornou um dos marcos mais expressivos da música brasileira produzida sob a ditadura militar. A entrada é franca.

O disco atravessou a adolescência da pensadora e moldou sua relação com a música e a poesia, territórios que sempre habitou com intensidade. "Gal Fatal marcou muito a minha adolescência, a minha descoberta da música – que sempre tive muito vínculo – principalmente porque é um disco muito poético, tem letras muito incríveis, especialmente de Waly Salomão. É um disco poético, tem vínculo com minha vida poética", revela a poeta que, com abordagem filosófica e sensível, promete iluminar as camadas de significado desse trabalho que misturou corpo, voz e política num grito de liberdade em tempos sombrios.

Lançado três anos após o AI-5, o álbum trazia uma capa que se desdobrava para revelar poemas e palavras de ordem de Waly Salomão, poeta que deixou sua marca indelével na obra. O álbum consolidou a cantora baiana como a voz da contracultura brasileira, a musa de um verão engajado e de um público que cultuava o desbunde enquanto respirava pelas frestas de uma ditadura que asfixiava as liberdades de expressão.

A força do disco reside justamente nessa capacidade de ser, ao mesmo tempo, manifesto estético e político, celebração do corpo e da liberdade num momento em que ambos estavam sob cerco. Viviane Mosé, com sua rara habilidade de mostrar como a arte popular contém pensamento profundo, tem a chave de interpretação necessária para revelar o que "Fa-Tal" representa: uma obra que exige leitura filosófica e sensível, capaz de unir reflexão e emoção. Gal Costa, em sua potência cênica e musical, encontra em Mosé a interlocutora ideal para decifrar as múltiplas camadas desse trabalho que permanece vivo e necessário mais de cinco décadas depois.

O formato do Disconcertos, que já se consolidou como experiência singular no cenário cultural carioca, transforma a audição em ritual coletivo. Durante o encontro, Dodô Azevedo e Viviane Mosé apresentam o álbum ao público tocando as faixas em um toca-discos de vinil, enquanto um telão exibe videoarte criada exclusivamente para a ocasião. Letras das músicas, informações gráficas, a capa do álbum e artes referentes ao período do disco compõem a experiência visual que acompanha a audição. O resultado é uma catarse coletiva musical que provoca sentimentos diversos e coleciona admiradores a cada edição. Como num concerto, mas no lugar da orquestra, um disco.

 

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Fa-Tal, Gal a Todo vapor | Foto: Divulgação

A ideia do Disconcertos nasceu em 2012, quando Dodô Azevedo caminhava pelas ruas de Bruxelas, na Bélgica, e foi surpreendido por um cartaz numa sala de concertos de música clássica anunciando uma audição coletiva do álbum em vinil "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles. Curioso, compareceu e ficou impressionado com a experiência que incluía não apenas as músicas, mas comentários faixa a faixa, contextualizando as canções na vida do apresentador e oferecendo uma aula sobre o período histórico no qual o álbum havia sido concebido: a Londres de 1968. Imediatamente, Dodô compreendeu que álbuns, especialmente os brasileiros, guardavam histórias particulares e coletivas, e que a história do Brasil estava melhor contada pelas canções do que por qualquer outro meio.

O projeto já teve quatro edições antes desta temporada no Futuros Arte e Tecnologia. A primeira, em 2013, aconteceu na Livraria Folhas Secas, no Centro do Rio de Janeiro, com Dodô falando sobre os álbuns "Refazenda", "Realce" e "Refavela", de Gilberto Gil. A segunda, em 2018, na Janela Centro Cultural, trouxe "Tropicália ou Panis et Circencis" – lançado por Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé, acompanhados do maestro Rogério Duprat e dos poetas Capinam e Torquato Neto – com Dodô estabelecendo um paralelo entre o disco e a Semana de Arte Moderna de 1922.

A terceira e a quarta edições adotaram o formato com convidados que permanece até hoje. Em 2020, no Teatro da USP, em São Paulo, foram dez participantes; em 2023, no Futuros Arte e Tecnologia, no Rio de Janeiro, quatro convidados, entre os quais a cantora Duda Beat, que celebrou a oportunidade de falar sobre Eduarda e menos sobre a artista famosa e figura pública. A temporada atual no Futuros Arte e Tecnologia é a primeira em residência e já contou com a participação do compositor, instrumentista e produtor musical Barral Lima, da jornalista Ana Paula Araújo e do historiador e escritor Luiz Antonio Simas. Após o encontro com Viviane Mosé, haverá ainda mais uma edição para completar a série.