Por: Affonso Nunes

Lenine, corpo e alma no Nordeste

Em cena do audiovisual que acompanha o álbum, Lenine circula pelas ruas do Recife | Foto: Malu Freire/Divulgação

Cantor e compositor retorna aos estúdios com 'Eita', álbum de inéditas que reafirma seus compromissos artísticos e pessoais com a região

Dez anos se passaram desde que Lenine entrou em um estúdio para gravar um disco inédito. O retorno acontece agora com "Eita", nono álbum de estúdio do artista pernambucano, disponível nos aplicativos de música e acompanhado de um audiovisual em média-metragem no YouTube. O projeto marca uma fase em que o artista assume o controle total do processo criativo, da concepção à finalização, e reafirma seu vínculo visceral com o Nordeste.

Expressão popular que transita entre o espanto, o encanto e a celebração, "Eita" sintetiza o espírito de uma obra que o próprio artista define como seu trabalho mais pessoal. "Empoderei-me de todos os meios, todos os caminhos, todas as etapas", pontua Lenine, que assina direção artística ao lado da produção musical do filho Bruno Giorgi. Essa autonomia criativa se reflete em cada faixa e nas demais etapas da produção, dos arranjos à concepção visual, passando pela direção do audiovisual realizada em parceria com Kabé Pinheiro e Laís Branco.

As onze faixas inéditas de "Eita" remetem à sonoridade única de Lenine, algo que conhecemos desde o seminal "Olho de Peixe" (1993), quando a canção "Leão do Norte" (parceria com Paulo César Pinheiro) catapultou sua carreira. Desde então Lenine imprimiu à MPB uma assinatura sonora só sua, construída sobre um violão polifônico (capaz de entregar elementos harmônicos, melódicos, contrapontos e percussivos), o diálogo permanente com a poesia concreta e a incoprporação de recursos tecnológicos. E talvez por isso "Eita" ocupe lugar tão especial em sua discografia, por pensar o Brasil em suas diversas camadas.

O ano está acabando e "Eita" chega como um dos melhores lançamentos de 2025. Mesmo gravado no fim do primeiro quarto do século 21, o álbum poderia, sim, figurar entre os grandes discos da MPB dos anos 1990, assim como o próprio "Olho de Peixe" ou "O Dia Em Que Faremos Contato", de 1997.

Na faixa de abertura, "Confia em Mim" (Lenine e Dudu Falcão), canta que "o sonho é o mar mais perigoso para quem não quis acordar". Na faixa-título ele avisa que "O fato é que afeto é a receita / que pode transformar nossa conduta". E "eita', a palavra de ordem é entoada por alguns nordestinos ilustres como a maranhense Alcione, o alagoano Djavan, a baiana Ivete Sangalo e o pernambucano Luis Inácio Lula da Silva.

Lenine aprecia parcerias e gosta de se cercar de jovens compositores. Aqui nomes como Carlos Posada e Gabriel Ventura lhe entregam letras que deividem espaço com parceiros mais frequentes em sua discografia como Arnaldo Antunes, Dudu Falcão, o filho João Cavalcanti, Lula Queiroga e Siba.

Maria Bethânia leva brilho e delicadeza à lindíssima e tocante "Foto de Família" (Lenine e João Cavalcanti) onde se ouve que "no dilúvio bem-vindo da humanidade / o amor é uma espécie de vacina"; Maria Gadú faz duo com Lenine em "O Rumo do Fogo" (parceria com Lula Queiroga), um maracatu arretado; o conterrâneo Siba está em "Malassombro" (Lenine e Siba) e Gabriel Ventura em "Beira" (Lenine e Gabriel Ventura) integram o time de participações especiais, que se completa com a presença do Terreiro Xambá, com a família Bongar trazendo seus toques, loas e danças para a faixa "Boi Xambá".

O audiovisual que acompanha o álbum conduz o espectador por uma experiência sensorial que atravessa Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, misturando paisagens reais e imaginadas numa organização de imagens que se relaciona diretamente com as letras do álbum. Ainda assim, o filme segue caminho próprio e transforma esse ideário de Lenine me manifesto artístico e político sob o filtro do afeto e das lembranças do artista.

A dimensão visual do projeto ganha corpo desde a capa, assinada pela artista pernambucana Luiza Morgado. Concebida em linogravura e fotografada por Flora Pimentel, a obra traduz o universo afetivo do disco. "Fui criando um banco de imagens mentais. Aos poucos, percebi que o fio que unia tudo era o afeto. O álbum é uma casa, muito nordestino, muito pernambucano, mas também muito íntimo", conta Luiza, que desenvolveu o trabalho em processo intenso de trocas com o músico.

Macaque in the trees
Eita, álbum de Lenine | Foto: Divulgação

A produção musical de "Eita" contou com arranjos de Carlos Malta, Henrique Albino e Martin Fondse, além de participações instrumentais que vão de Mestrinho na sanfona a Marcos Suzano nos pandeiros, passando por Alberto Continentino no contrabaixo acústico.

O álbum se fecha com "Motivo", parceria com Carlos Posada, que funciona como uma declaração de princípios: "por A B/ a pessoa sem palavra / pode estar cheia de prata / que não vale um tostão".