Palma de Ouro de Cannes, 'Foi Apenas Um Acidente' estreia nesta quinta no Brasil e passa por Marrakech levando seu diretor, porta-voz da violência política do Irã, rumo ao Oscar
É tempo, enfim, de o circuito comercial brasileiro prestigiar a Palma de Ouro de 2025: "Foi Apenas Um Acidente", de Jafar Panahi, estreia nesta quinta-feira, numa sinergia entre as distribuidoras (e plataformas) Imovision e MUBI. Apesar de ser iraniano, esse suspense de tônus político foi escolhido pela França (sua coprodutora) para representá-la oficialmente na apreciação da Academia de Hollywood, em busca de uma vaga na disputa do Oscar 2026 - o que amplia as chances de sucesso da produção na telona. Sua campanha pelo troféu mais cobiçado do cinema ganha um reforço marroquino: neste 4 de outubro, a produção ganhará sessão no Festival de Marrkech, onde seu diretor participa de uma sabatina, aberta ao público, longo de uma hora. Há de desabafar todas as atrocidades a que foi submetido por autoridades de sua pátria, ao ser detido num veto à liberdade de expressão.
Aos 65 anos, Panahi já trazia no currículo o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno (dado a 'O Espelho", em 1997); o Leão de Ouro de Veneza (conferido a "O Círculo", em 2000); e o Urso de Ouro da Berlinale, atribuído a ele há dez anos, por "Táxi Teerã", que pode ser visto esta noite, no Reserva Cultural de Niterói e no Cinesystem Belas Artes, de Botafogo. Esses dois espaços põem sua filmografia em revisão. Seu histórico de vitórias divide espaço com uma profissão de fé na autonomia criativa, marcada por múltiplas retaliações em seu país. Em 2010, foi condenado a seis anos de prisão e ficou proibido de filmar e de sair do Irã (por 20 anos), sob a acusação de fazer propaganda contra o regime que governa sua terra natal. Apesar das restrições, no ano seguinte, realizou "Isto Não É um Filme" (2011), ambientado em seu claustro domiciliar. Acabou liberado, com o apoio da comunidade cinéfila internacional. Em 2022, quando foi laureado com o Prêmio Especial do Júri em solo veneziano, por "Sem Ursos", o diretor foi preso e só foi libertado em fevereiro de 2023, depois e fazer greve de fome.
Ao consagrar "Un Simple Accident" (título original de seu novo trabalho), Cannes coroou sua resiliência na peleja para ser livre... e para denunciar intolerâncias. Em maio, Panahi entrou para o seletíssimo rol dos ganhadores da Palma dourada, num time que, nos últimos dez anos, incluiu Jacques Audiard, Ruben Östlund, Hirokazu Koreeda, Bong Joon Ho, Julia Ducournau, Justine Triet e Sean Baker. Ao receber o troféu francês, ele declarou publicamente na Croisette o quanto o risco à sua segurança aumentou. Sua nação, há tempos, é azeda com os filmes que ele faz... e isso desde a sua estreia na realização, há 30 anos, com "O Balão Branco" (ganhador da Camèra d'Or na Croisette em 1995). Tratam sua obra como um atentado à dignidade do Irã. Tanto é que, de lá, não se ouviu comemoração governamental alguma quando ele foi galardoado na Côte d'Azur.
O fato de "Foi Um Simples Acidente" narrar a vingança de um torturado contra o agente de estado que o vitimizou complicou ainda mais as chances de as autoridades de sua pátria festejarem sua consagração. Mas ela é merecida. Trata-se de um realizador que, há três décadas, segue a pavimentar um legado autoral no qual poesia e indignação caminham juntos, numa linha (por vezes) tênue entre ficção, etnografia, documentário e semiótica.
"Para um cineasta, cada prêmio é um prazer e foi necessário muito trabalho para ganhar este troféu", disse Panahi em Cannes, com a Palma nas mãos. "Em um determinado momento, eu tinha muitas imagens diferentes passando pela minha cabeça. Estava pensando em todos os rostos dos meus amigos que estavam na prisão comigo. Naquela época, nós estávamos na cadeia, mas o povo iraniano estava nas ruas lutando pela liberdade. Naquele momento, eu disse a mim mesmo que estava feliz por eles".
Seu eletrizante "Foi Apenas Um Acidente" parece thriller. Enerva como um. Remete ao Costa-Gavras de "Estado de Sítio" (1972) ou de "A Confissão" (1970) por dialogar com a cartilha do thriller político. O enredo toma corpo conforme o mecânico Vahid encontra por acaso o homem que acredita ter sido seu torturador na prisão, ele o sequestra decidido a se vingar. A única pista sobre a identidade desse sujeito é o som peculiar de sua perna protética. Vahid então recorre a um grupo de outras vítimas libertas em busca de confirmação, e o perigo só aumenta. Enquanto enfrentam o passado e suas visões de mundo divergentes, o grupo precisa decidir: será realmente ele, sem dúvida alguma? E o que significaria, na prática, a retribuição?
No arranque do longa-metragem, Panahi segue num carro onde um casal tenta conter uma menininha em plena euforia, com seu boneco de pelúcia preferido. Uma colisão trava o veículo. A pequena tem medo do que se passa, mas o pai a acolhe, ainda que com severidade. Nesse início tenso, ocorre o tal "simples acidente" do título, que deflagra uma cruzada de revanche sem medo de exposições gráficas da violência. Aparentemente, abateu-se um cão. O pai entra num galpão para pedir ajuda e alerta um operário, Vahid, que parece reconhecer o som característico do seu andar manco, fruto de uma prótese na perna. No dia seguinte, Vahid bate na cabeça desse homem com uma pá antes de colocá-lo na parte de trás de sua van, que se torna tanto a força motriz quanto a principal locação desse longa filmado num regime próximo à clandestinidade.
"Eu aprendi com 'Táxi Teerã' a filmar em veículos em movimento. Num carro, você se sente em segurança", disse Panahi em Cannes, entrando em detalhes de uma de suas detenções. "Eu fui vendado e levado para uma cela tão pequena que eu mal podia me mexer. Lá eu colhi histórias que compõem o roteiro desse meu novo filme".
A 22ª edição do Festival de Marrakech termina no dia 6.