Belchior acantou as angústias de uma geração sufocada pelos anos de chumbo | Foto: Divulgação
Obra-prima de Belchior, 'Alucinação' abre a série da Universal Music que vai relançar álbuns clássicos da MPB de seu catálogo lançados em 1976
O ano de 1976 é frequentemente apontado como um momento excepcional da música popular brasileira, quando uma safra de álbuns definitivos redesenhou os contornos da canção nacional. Dona de uma dos maiores catálogos de nossa canção Popular, a Universal Music Brasil prepara uma série de relançamentos que revisita grandes obras daquele período, todas completando agora cinco décadas. O primeiro disco escolhido para inaugurar o projeto Safra 76 é "Alucinação", segundo trabalho do compositor cearense Belchior, que chega ao mercado em edição especial em vinil. O álbum cristaliza o espírito de uma época marcada pelo confronto entre a desilusão com os sonhos da década anterior e a necessidade urgente de encontrar novos caminhos para a criação artística.
Um artista que não negociou com o romantismo
Com versos longos, quase dylanianos, Belchior deu nome às coisas num momento de forte repressão política | Foto: Fotos/Divulgação
A natureza da alucinação proposta por Belchior já se revela na faixa-título do disco, que abre o lado B do LP. Ali, o bardo cearense oferece a chave interpretativa do trabalho quando canta que sua alucinação é suportar o dia a dia e que seu delírio está na experiência com coisas reais. Uma declaração de princípios que descartava qualquer tipo de romantismo escapista em tempos difíceis. O trabalho se escora numa poética do choque com o concreto, um realismo que não negocia subterfúgios líricos ou idealizações consoladoras.
Compreender "Alucinação" exige situá-lo no ressaca cultural que marcava aquele momento. Depois dos sonhos utópicos dos anos 1960, com a liberação sexual, as experiências psicodélicas, a resistência artística contra a ditadura militar e a explosão criativa dos festivais, chegara o despertar amargo. John Lennon já havia anunciado que o sonho acabara, e no Brasil a ditadura recrudescera violentamente a partir do AI-5, inaugurando os chamados anos de chumbo. É nesse território de desencanto com o passado recente, por um lado, e de sede de futuro, por outro, que Belchior construiu este trabalho seminal.
O disco funciona como uma proposta de reorganização da MPB diante de um país e um tempo que não permitiam ilusões. Belchior abandona deliberadamente o simbolismo difuso que marcara a década anterior e aposta numa escrita direta, urbana, carregada de elementos autobiográficos e crítica social. Sua poética se alinha com uma vertente da contracultura que ganhava força na música brasileira daquele momento, mais interessada em nomear as coisas do que em rodeá-las com metáforas.
A urgência desse projeto se manifesta formalmente: versos longos, quase falados, e um vocabulário que aproxima a canção da linguagem cotidiana. "Apenas Um Rapaz Latino-Americano", que abre o álbum, é uma autodescrição sem disfarces na qual o artista apresenta seu chão geográfico, sua geração, sua condição financeira e seu lugar na sociedade. A canção inclui ainda uma ironia dirigida ao "antigo compositor baiano" — referência a Caetano Veloso que sinalizava a visão de Belchior de que era preciso superar a geração anterior da MPB.
A produção de Marco Mazzola, apoiada nos teclados e arranjos de José Roberto Bertrami (do Azymuth), consolida a linguagem híbrida do disco. O álbum cruza elementos da música regional nordestina com o léxico elétrico da metrópole, resultando numa sonoridade que transita entre folk, blues, soul e baião. Essa mistura reforça a própria experiência narrada nas letras: a travessia do Nordeste ao Sudeste, o choque com a cidade grande, a fricção entre expectativa e realidade. Em "Fotografia 3x4", o triângulo tocado devagar sublinha a memória dura da chegada ao Rio; em "Não Leve Flores" e "Antes do Fim", a presença do country surge como comentário sobre deslocamento e destino; em "A Palo Seco", a estética sem ornamentos casa perfeitamente com o projeto poético de um "canto torto feito faca".
A capa, fotografada por Januário Garcia e tratada com efeito de solarização pela equipe da gravadora, sintetiza essa travessia: um retrato urbano, direto, sem glamour, coerente com o realismo cru do álbum. Duas composições de "Alucinação" alcançaram grande repercussão quando gravadas por Elis Regina naquele mesmo ano: "Como Nossos Pais" e "Velha Roupa Colorida". Essa circulação ampliada ajudou a empurrar o disco para o centro da vida cultural brasileira, garantindo vendas expressivas já nas primeiras semanas.
A edição especial de 'Alucinação' em vinil abre o projeto de relançamentos batizado de Safra 1976 | Foto: Divulgação
A recepção crítica em 1976, porém, dividiu-se: enquanto parte da imprensa enxergava no trabalho uma renovação formal — com suas letras extensas, dicção dylaniana e mistura de gêneros —, outra vertente considerava o disco excessivamente obsessivo em sua busca pelo novo. Essa fricção explica, em parte, a permanência de "Alucinação" como objeto de debate.
Cinco décadas depois, o álbum segue como marco por ter transformado o desencanto numa linguagem própria e por ter ancorado a canção num realismo que dialogava com a experiência concreta da juventude da época. Entre as faixas que compõem o disco estão também "Sujeito de Sorte" e "Velha Roupa Colorida", que ao lado das já mencionadas formam um conjunto impressionante de composições que, mesmo sendo retratos de uma época, souberam se manter ao longo do tempo.
O relançamento em vinil recoloca esta obra-prima como documento desse momento histórico, mas também como obra que continua a falar ao presente pela clareza, pela coragem estética e pela recusa em fugir da realidade. Até o fim de 2026, a série "Safra 76" deve trazer ainda os álbuns "Cartola" (1976), "Cuban Soul: 18 Kilates", de Cassiano, e "Falso Brilhante", de Elis Regina, todos em edições especiais.