Por: Affonso Nunes

Vidal Assis, um novo sambista 'das antigas'

Elton medeiros e Vidal Assis num registro afetuoso entre mestre e pupilo | Foto: Leo Martins/Divulgação

Quando se ouve Vidal Assis há quem se lembre de Emílio Santiago. Pode ser um pouco pela afinação perfeita, pelo timbre aveludado... Mas o fato é que esse cantor e compositor carioca não precisa escorar sua trajetória no saudoso artista. É intérprete de mão cheia como se vê neste lindíssimo "Negro Samba Lírico - Vidal Assis canta Elton Medeiros", um tributo a um dos mais importantes autores do nosso samba. O trabalho reúne clássicos e inéditas do compositor, que nos deixou em 2019, em parcerias com nomes como Chico Buarque, Paulinho da Viola e João Bosco.

Lançado pela Kuarup, o álbum reúne 14 faixas que fazem resplandecer o lirismo melódico e poético característico da obra de Elton. O repertório navega entre clássicos consagrados como "O Sol Nascerá", parceria de Elton com Cartola que arremata o álbum fazendo raiar a esperança no horizonte, e "Onde a Dor Não Tem Razão", composta com Paulinho da Viola, além de apresentar ao público sete canções inéditas que resultaram das colaborações de Elton com Ronaldo Bastos, Nei Lopes, Cristóvão Bastos e o próprio Vidal Assis. Extraordinário melodista, Elton tinha o dom no encadeamento das notas musicais para criar sambas de beleza rara. Seu lirismo melódico encontrava a perfeição ao ganhar versos de parceiros poetas do naipe de Cartola, Paulinho da Viola e Zé Ketti.

A base instrumental do álbum ficou a cargo do Trio Júlio, formação que dá fino acabamento ao disco e reúne os talentosos irmãos Marlon Julio (violão de sete cordas), Maycon Julio (bandolim e cavaquinho) e Magno Julio (percussões). O bandolim de Maycon é de emocionar ouvintes desavisados em "Peito Vazio" e em "Mais Feliz", faixa que conta com a participação de Ayrton Montarroyos. A única exceção nesta formação instrumental é "Baile dos Amores", interpretada em duo por Vidal e Cristóvão Bastos ao piano. Trata-se de uma inédita surgida de melodia de Elton e Cristóvão letrada por Vidal.

"Considero que o samba é uma das nossas maiores revoluções culturais, por se tratar de um gênero desenvolvido por negros e negras descendentes de africanos e africanas escravizados e que, mesmo sendo historicamente perseguido, resistiu e encanta o mundo até os dias de hoje. E há uma linhagem do samba que se debruça na janela da poesia e esculpe no vento melodias com o cinzel da emoção", afirma.

Um desses parceiros poetas, mas não melodista, é Hermínio Bello de Carvalho, idealizador junto com Vidal deste trabalho.

Aos 40 anos, Vidal se revela um sambista "das antigas" ao se filiar à vertente formada por nomes como Cartola, Elton Medeiros e Paulinho da Viola, compositores que priorizaram melodias sofisticadas e letras repletas de imagens poéticas.

Chico Buarque divide os vocais com Vidal em "Mascarada", obra-prima da parceria Elton Medeiros e Zé Keti de 1964, coincidentemente já gravada por Emílio Santiago. João Bosco fez diferença como violonista e cantor na gravação de "Pressentimento", parceria de Elton com Hermínio Bello de Carvalho de 1968. Paulinho da Viola aparece em "Folhas no Ar", samba menos conhecido de Elton com Hermínio lançado há 60 anos por Elizeth Cardoso no álbum "Elisete Sobe o Morro". Ayrton Montarroyos participa da já citada "Mais Feliz", e a cantora Beatriz Rabello - filha de Paulinho - divide os vocais com Vidal em "Iluminada".

O arranjo de "Moemá Morenou", clássico da parceria Elton-Paulinho de 1981, faz o álbum entrar na roda do samba-chula da Bahia, com as palmas de Munique Mattos e o arsenal percussivo de Magno Julio que inclui agogô, congas, pandeiro, prato e reco-reco. A solução criativa incorpora elementos do samba de roda do Recôncavo Baiano, com prato e violão ponteado típico do samba-chula de Santo Amaro da Purificação. Já "Maioria Sem Nenhum", composição de Elton e Mauro Duarte originalmente lançada em 1966 no LP "Samba na Madrugada", faz a cuíca chorar para denunciar a injustiça social em discurso turbinado com a récita, no compasso do rap, do poema "Como eu quero ser lembrado", do próprio Vidal.

Além de músico, Vidal Assis é mestre e doutor em Educação pela UFRJ, com pesquisas sobre a construção das subjetividades de pessoas negras fundamentadas em autores como Grada Kilomba, Frantz Fanon, Carla Akotirene e Djamila Ribeiro. Para ele, Elton Medeiros ocupa lugar central em sua memória afetiva: "Elton é um compositor que me inspirou em vida, e, hoje, sua obra me inspira todos os dias a ser um artista melhor. Por isso, ao cantar as músicas desse álbum, a bem da verdade, estou cantando o repertório da minha vida." Este é seu segundo disco, após "Álbum de Retratos" de 2016, que já contava com participação de Elton Medeiros e lhe rendeu duas indicações ao Prêmio da Música Brasileira em 2017.

Se você ainda não conhecia Vidal de Assis, vos apresento um novo sambista "das antigas".

 

Macaque in the trees
Vidal Assis | Foto: Diego Lima/Divulgação