Cantor e compositor traz ao Rio turnê comemorativa em que revisita trajetória marcada pela síntese entre rock, cultura nordestina e psicodelismo
Quando Zé Ramalho pisou pela primeira vez nos palcos do eixo Rio-São Paulo, nos anos 1970, trazia consigo uma combinação inusitada: a inquietação do rock mesclada à cadência do forró, versos que evocavam simultaneamente o misticismo sertanejo e as experiências lisérgicas da contracultura que dominava a cena internacional. Quase cinco décadas depois, celebra seu aniversário com a turnê "75 Anos de Vida - Temporada de Sucessos", que passa pelo Qualistage neste sábado (8).
"Não vejo nada de especial em fazer 75 anos de vida. É uma forma que os donos das casas de espetáculos usam para chamar e informar as pessoas, e que dará bons rendimentos. Tenho o privilégio de ter um público que lota minhas apresentações", disse o artista, despido de qualquer modéstia, em entrevista recente ao jornal Folha de S. Paulo.
A trajetória de Zé antecede sua chegada triunfal ao olimpo da MPB. Antes do histórico álbum de estreia de 1978, que os fãs até hoje chamam de "o disco do Avôhai", o jovem de João Pessoa já transitava entre bandas de rock e a produção de literatura de cordel, tendo publicado "Apocalypse Agalopado" em 1975. Esse flerte de uma estética roqueira com a tradição poética nordestina se tornaria a marca registrada deste bardo nordestino.
O impacto daquele primeiro disco surpreendeu crítica e público. "Assisti ao filme 'Woodstock'. Nele, apareciam imagens da cultura hippie. Os cogumelos surgiram nesse tempo. Sem essa viagem não existiria a música 'Avôhai'", recorda Zé.
Os anos 1970 testemunharam uma grande migração de artistas nordestinos para os centros culturais do Sudeste, fenômeno que redefiniu a cartografia da MPB. Dentro dessa constelação de talentos que incluía nomes como Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Belchior, Zé Ramalho destacava-se pela estranheza poética de suas composições. Havia algo de único naquela voz ora irônica, ora soturna, na batida segura que transitava entre a cadência roqueira e o balanço agitado do forró, na sua forte presença cênica.
A força mais sedutora de seu trabalho, contudo, está na sua escrita. A poética de Zé Ramalho estabeleceu-se rapidamente como referência obrigatória para compreender o psicodelismo e a contracultura dentro da música brasileira. Seus versos bebiam tanto no folk-rock de Bob Dylan quanto nos violeiros do Vale do Pajeú, despertando associações inesperadas, memórias ancestrais atravessadas por lampejos futuristas, intuições antigas quanto as pedras sertanejas filtradas por sensibilidades globalizadas.
"Os repentistas são a forma mais séria, importante e estranha que conheci. São pessoas mediúnicas pelo mistério que acontece quando estão improvisando. Quando tinha 22 anos, tive dois mestres: Otacílio Batista e Oliveira de Panelas. O universo deles está em todos os meus discos", disse Zé Ramalho na entrevista citada acima.
Ao longo de décadas, Zé Ramalho demonstrou que sua versatilidade não se limitava à composição própria. Entre 1991 e 2022, o artista lançou uma série de álbuns-homenagem que funcionam como arqueologia afetiva de suas influências: "Brasil Nordeste", "Nação Nordestina", além de discos dedicados a Raul Seixas, Bob Dylan, Luiz Gonzaga, George Harrison, Jackson do Pandeiro e os Beatles. Todos esses trabalhos mostraram ao grande público um intérprete capaz de absorver e recriar suas referências estéticas.
Receita é 'ramalhar'
O próprio artista cunhou um termo para esse processo de apropriação criativa: "ramalhar" uma música significa submetê-la a seu filtro pessoal até que atinja o "ponto" ideal, aquela combinação única de discurso poético, presença de palco e voz tudo num mesmo pacote.
O resultado desse processo contínuo de criação e recriação pode ser medido tanto em números quanto em permanência. São mais de 30 álbuns ao longo da carreira, 6 milhões de cópias vendidas, com destaque para o CD duplo "20 Anos: Antologia Acústica" de 1997, que ultrapassou a marca de 1 milhão de exemplares. Mas o dado mais significativo transcende as cifras: a obra de Zé Ramalho não se esgota na novidade, pelo contrário, ganha densidade com o passar do tempo. Canções como "Admirável Gado Novo", "Avôhai", "Chão de Giz" e "Vila do Sossego" ainda ecoam por sucessivas gerações, mantendo viva aquela estranheza poética que chamou atenção quando de seu lançamento.
SERVIÇO
ZÉ RAMALHO - 75 ANOS DE VIDA: TEMPORADA DE SUCESSOS
Qualistage (Av. Ayrton Senna, 3000, Barra da Tijuca)
8/11, às 21h
Ingressos A partir de R$ 70