Por: Affonso Nunes

A música perde Lô Borges

Um dos nomes mais marcantes da geração do Clube da Esquina, o mineiro Lô Borges nos deixa aos 73 anos | Foto: Divulgação

Cantor e compositor mineiro que integrou o lendário Clube da Esquina encerra uma trajetória marcada pela sofisticação harmônica e pela capacidade de transformar simplicidade em arte

É difícil imaginar que uma vida e obra marcada pela jovialidade e leveza se encontre com a finitude, mas a vida e morte formam uma esquina incontortonável. A música brasileira perdeu na noite deste domingo (2) um de seus criadores mais geniais. Lô Borges morreu em Belo Horizonte após complicações decorrentes de intoxicação medicamentosa, deixa um catálogo de tesouros musicais e seguirá como bússola de artistas que busquem caminhos entre o simples e o experimental.

O perfil de Milton Nascimento no Instagram publicou homenagem ao amigo. "Lô nos deixará um vazio e uma saudade enormes, e o Brasil perde um de seus artistas mais geniais, inventivos e únicos. Desejamos muito amor e força à família Borges, a qual acolheu Bituca em sua chegada a Belo Horizonte nos anos 1960", diz a publicação.

Internado desde 17 de outubro na UTI do hospital Unimed de Contorno, o compositor mineiro teve falência de múltiplos órgãos após passar por traqueostomia no último dia 25. A notícia surpreendeu especialmente quem acompanhava sua produtividade recente: em agosto, ele havia lançado "Céu de Giz", parceria com Zeca Baleiro, seu sétimo álbum de inéditas em apenas sete anos, demonstrando a mesma vitalidade criativa que marcou toda sua trajetória.

A história de Salomão Borges Filho, nascido em 10 de janeiro de 1952 no bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte, confunde-se com a própria história da música popular brasileira nas últimas décadas. Sexto filho de uma família de onze irmãos com fortes vínculos musicais, Lô teve sua vida transformada por uma mudança temporária ainda na infância. Quando a família se transferiu para o centro da capital mineira durante uma reforma na casa, o menino de dez anos conheceu, nas escadas do Edifício Levy, na Avenida Amazonas, um vizinho vinte anos mais velho que tocava violão. Era Milton Nascimento, que logo perguntaria ao garoto: "Você gosta de música, né, menino?". Aquele encontro casual definiria os rumos da MPB. Dois meses depois, ainda perambulando pelas ruas do centro, Lô conheceria outro menino de sua idade, Beto Guedes, que andava num patinete. O encantamento inicial pelo brinquedo logo se transformaria em parceria musical.

Quando a família Borges retornou a Santa Tereza, o adolescente Lô já havia tomado gosto pela música, seguindo os passos dos irmãos mais velhos. Nas ruas boêmias do bairro, ele e os amigos passavam tardes inteiras tocando violão em rodas que privilegiavam o repertório dos Beatles, grupo predileto de todos. Milton Nascimento, que não era mais vizinho, continuava frequentando a casa dos Borges. Em uma dessas visitas, como o próprio Lô relatou em entrevista ao programa Conversa com Bial em 2023, o encontro foi decisivo. "Tocou a campainha lá na casa da minha mãe, era o Milton Nascimento falando: 'Cadê o Lô?'. 'Ah, o Lô tá na esquina, num lugar que eles chamam de clube da esquina, ele está lá'. Aí o Bituca veio com o violãozinho dele, comecei a mostrar a harmonia que eu estava fazendo, era uma harmonia do Clube da Esquina, ele começou a fazer a melodia, e aí a gente fez a parceria Clube da Esquina. E na época ele já era famoso, eu era anônimo", contou o compositor.

Foi na esquina das ruas Divinópolis com Paraisópolis que nasceram músicas que ganharaim o Brasil e o mundo. Aqueles encontros informais de jovens apaixonados por música evoluiu para a formação do Clube da Esquina, movimento que integrava influências da música mineira, rock, samba, bossa nova e até pitadas de psicodelia. Além de Lô, o grupo reunia seu irmão Márcio Borges, que ao lado de Fernando Brant e Ronaldo Bastos formava o time de letristas, os cantores e compositores Beto Guedes e Flávio Venturini, o guitarrista Toninho Horta, o pianista Wagner Tiso e o baixista Novelli. À frente de todos, Milton, que já gravava discos individuais e tinha um sucesso nacional com "Travessia", emprestava sua voz inconfundível e sua visão artística ao coletivo.

Macaque in the trees
Milton Nascimento com os irmãos Lô (ao violão) e Márcio Borges: o terio assina vários sucessos do Clube da Esquina | Foto: Divulgação

Em 1972, esse grupo colaborou no álbum seminal "Clube da Esquina", que se tornaria um marco da MPB. Mais de cinquenta anos depois, o disco seria eleito o maior álbum brasileiro de todos os tempos e ocuparia a nona posição no ranking dos 300 discos mais icônicos da história da música mundial pela revista Estadunidense Paste Magazine. Muito jovem, com apenas vinte anos, Lô impressionou a gravadora com suas composições sofisticadas. Segundo gostava de relatar, chegou desesperado para contar a Milton que havia assinado um contrato para um disco solo. "Eles adoraram suas músicas. Você deveria estar contente", disse Milton. "Mas eu não tenho nenhuma música, usei todas no nosso disco! E eles querem gravar esse mês. Eu quero ir para a praia!", berrou um angustiado Lô. A solução foi passar o mês compondo de madrugada e gravando durante o dia, para lançar seu álbum de estreia, "Lô Borges", que ficaria conhecido como "disco do tênis" por causa da foto na capa, tornando-se um dos melhores álbuns de estreia da MPB.

A imagem do tênis largado no chão simbolizava o desejo jovem de partir, viajar, ter experiências na estrada. No álbum já estavam composições que se tornariam clássicos absolutos, como "Paisagem da Janela", "O Trem Azul" e "Um Girassol da Cor do Seu Cabelo", que ganhariam versões por inúmeros artistas e se consolidariam no repertório de qualquer músico que se preze. A sofisticação harmônica e melódica dessas canções, aliada à simplicidade lírica, revelava um compositor maduro apesar da pouca idade. Mas o sucesso repentino teve efeito contrário ao esperado. Lô deu um tempo dos palcos e foi viver em Arembepe, na Bahia, onde passou anos tocando violão e compondo longe dos holofotes. "Eu estava vivendo a minha vida, tocando violão, eu não parei de compor, as canções foram se avolumando na minha vida, aí eu voltei em 78, com muito mais maturidade e fiz um álbum que eu considero um dos melhores álbuns que eu já gravei, que já compus, que é o Via Láctea", relatou o compositor.

O álbum "A Via Láctea", lançado em 1979, marcou seu retorno após o período de reclusão. A crítica foi unânime ao apontar que ali ele mostrava uma maturidade maior, tanto em composição quanto em performance como cantor. Mesmo diante de um mercado difícil e das pressões da gravadora diante de seu comportamento considerado "hippie", Lô manteve sua integridade artística. Em 1984, fez sua primeira turnê por todo o Brasil com o disco "Sonho Real". Ao longo dos anos 1980, 1990 e 2000, manteve uma produção relativamente discreta em termos de número de lançamentos, gravando apenas cinco discos num período de mais de duas décadas, entre 1980 e 2003. Mas sua influência só crescia: suas músicas eram interpretadas por outros artistas, suas harmonias e melodias serviam de referência para gerações posteriores.

Na década de 1990, uma parceria com Samuel Rosa na música "Dois Rios", sucesso com o Skank, trouxe Lô de volta aos holofotes e juntou três gerações na composição. A canção, que também tinha a assinatura de Nando Reis, mostrava como o compositor mineiro conseguia dialogar com músicos mais jovens sem perder sua identidade. Musicalmente, Lô é reconhecido por fundir estilos com naturalidade: a base da música popular brasileira, com samba, bossa nova e música mineira de raiz, dialoga tranquilamente com o rock e o jazz. Sua abordagem harmônica é sofisticada sem ser hermética, acessível sem ser simplória. Nas letras, quando se arriscava como letrista, as canções transitavam entre o pessoal e o coletivo, o autobiográfico e o simbólico, com predileção por temas universais que talvez ajudem a explicar por que tanta gente regravou suas composições.

Neste século, Lô seguiu lançando álbuns, colaborando e revisitando seu catálogo, mostrando que a criatividade não se esgotou com o tempo. Desde 2019, o artista mantinha a tradição de lançar um álbum de músicas inéditas por ano, demonstrando uma produtividade impressionante. Seu disparo final de álbuns de material inédito inclui "Rio da Lua" (2019), "Dínamo" (2020), "Muito Além do Fim" (2021), "Chama Viva" (2022), "Não Me Espere na Estação" (2023), "Tobogã" (2024) e o recente "Céu de Giz", com Zeca Baleiro. Na lista pode ser incluído também o registro de show "50 Anos de Música: Ao Vivo na Sala Minas Gerais", lançado em 2023. Essa fase tardia da carreira surpreendeu até os fãs mais fiéis, acostumados com os longos intervalos entre lançamentos que marcaram décadas anteriores.

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Lô Borges e Zeca Baleiro inauguraram parceria no derradeiro álbum do artista mineiro | Foto: Flávio Charchar/Divulgação

Em 2023, o cineasta Rodrigo de Oliveira dirigiu o documentário "Lô Borges: Toda Essa Água", que buscou capturar a essência de um artista sempre muito reservado em sua vida privada. O filme, embora não trouxesse muitas revelações pessoais devido ao próprio temperamento discreto do compositor, conseguiu mostrar o processo criativo de alguém que nunca parou de compor, mesmo nos períodos de menor visibilidade pública. Sua participação no Clube da Esquina, a originalidade de seu primeiro álbum solo e a continuidade de sua produção fizeram dele uma figura central para se entender a música mineira, a MPB e as relações entre música popular e experimentação no Brasil. Há tempos, ele foi e segue sendo referência para músicos mais jovens que buscam explorar suas raízes musicais com olhar contemporâneo.

Lô Borges começou como talento precoce, lançou um álbum solo emblemático ainda jovem, passou por fases de reclusão e menor visibilidade, mas manteve consistência e influência ao longo da carreira. Depois, já na casa dos sessenta anos, encontrou energia e inspiração para uma produção intensa e relevante.