Por: Affonso Nunes

'A Cabeça, um álbum que nasce do acaso

Fred Demarca | Foto: Breno Rotatori/Divulgação

Segundo álbum solo de Fred Demarca nasce de parceria inesperada com o letrista Roberto Didio

Ahistória de "A Cabeça", segundo álbum de Fred Demarca que acaba de se aconchegar nas plataformas começa sob o signo da despretensão. O que era para ser apenas uma tentativa de diálogo criativo entre o cantor e compositor e o letrista Roberto Didio transformou-se rapidamente em uma das parcerias mais férteis da trajetória do músico. Dez melodias enviadas de uma só vez, sem compromisso de virar disco, encontraram na escrita do tarimbado letrista uma declaração de amor à canção brasileira e suas raízes mais profundas.

E a sinergia que brotou dessas composições tornou-se admiração mútua. Didio define o parceiro como "operário em construções diversas", um artista versátil que encara o contraditório sem covardia, cujo canto tem "condão sensível, potente", sendo ao mesmo tempo "confeitaria francesa e doce de subúrbio, porcelana e aspereza".

Demarca devolve os mimos e destaca a artesania com que Didio se dedica ao ofício de escrever letras. "Ele entrega o que eu gostaria de ter escrito, mas não fui capaz", reconhece o compositor, que desde 2012 vem construindo uma sólida carreira com as bandas Pietá e Selva Lírica.

O álbum abre com a faixa-título, manifesto sobre escolhas e contradições que Didio define como "passo onírico do homem na vereda das contradições" e que Demarca enxerga como reconhecimento do poder transformador da cabeça, dona dos nossos caminhos. Em seguida, Alguém Sonhando? questiona em forma de samba a velocidade do mundo contemporâneo, evocando a praça onde ninguém mais observa e funcionando como chamado para que não desistamos de sonhar. A homenagem a Milton Nascimento vem com Daquela Voz, melodia de "brisa misturada" que Demarca descreve como agradecimento em forma de canção à voz que embalou gerações.

"Cecília Santa", inspirada nas cantorias de procissão, celebra a fé como cuidado coletivo e o sincretismo que tece o Brasil, enquanto "Rosa Pequena", com participação da intérprete Ilessi, denuncia o abismo social do país e exalta a força de quem escreve a própria história. Didio chama a canção de "veneno especial"; Demarca a enxerga como canto de resistência. A reflexão sobre memória e finitude aparece em No Mistério, que para Didio traz lampejos da constelação da memória e para Demarca representa "o instante do grande mistério: o último suspiro".

O samba íntimo "Que vai Além" segue para além de quem o ouve, numa síntese que Demarca resume com precisão: "se meu samba tocar alguém, mesmo que seja uma alma só, já foi além". Já "Do Túnel pra Cá" presta tributo ao subúrbio carioca, berço de ambos os compositores, funcionando como declaração de amor ao território do parceiro e evocando a saudade dos domingos de samba no Andaraí. A crítica à vaidade e ao poder no fazer artístico vem com "Pois é, Artista", que questiona o caos das relações de poder e evoca Mauro Duarte: "não adianta estar no mais alto degrau da fama com a moral enterrada na lama".

O disco encerra com "Zaragateira", provocação de ordem e festejo que ocupa os espaços, "catarse brasileira" que Demarca define como samba-falange que toma tudo o que vem pela frente. A direção musical ficou a cargo de Demarca, Didio e João Camarero, com percussão geral de Marcus Thadeu e cavaquinho de Ana Rabello, companheira de Didio, em quatro faixas.

O trabalho também se distingue pela força das vozes: além do próprio Demarca, Ilessi e Diogo Mirandela dividem protagonismo em diversos momentos, enquanto o coro formado por Luísa Lacerda, Nívea Magno, Miguel Rabello e Muato amplia a densidade vocal da obra.

Quando procurou Didio para propor a parceria, Demarca não imaginava estar começando uma das mais importantes de sua trajetória. A dificuldade maior, segundo ele, foi deixar tanta música boa de fora.