Por: Affonso Nunes

Chico Chico, talento em estado de combustão

Chico Chico mostra maturidade e versatilidade em seu terceiro trabalho de estúdio | Foto: Zabenzi/Divulgação

Em tempos de singles e EPs, cantor e compositor tem lenha para queimar em 'Let it Burn - Deixa Arder', seu terceiro trabalho de estúdio, que reúne 20 canções, 17 delas de uma autoralidade

Num momento em que a indústria musical privilegia o imediatismo dos singles e a brevidade dos EPs, Chico Chico faz uma aposta ousada ao lançar "Let It Burn - Deixa Arder", álbum com 20 faixas que marca seu terceiro trabalho solo de estúdio. Lançado no fim de semana pela gravadora Deck, o disco representa o projeto mais ambicioso da carreira do cantor e compositor. Mesmo recente, sua carreira etá mais do que consolidada. Vale (e muito) ouvir que esse artista tem a nos dizer.

 

Uma chama que se espalha com brilho

Chico Chico apresenta um disco que merece uma audição atenta do início ao fim | Foto: Zabenzi/Divulgação

Filho de Cássia Eller, Chico Chico vem construindo sua identidade musical sem se apoiar na sombra materna embora algumas referências sejam visíveis. Desde o álbum de estreia com a banda 2x0 Vargem Alta (2015), até os trabalhos solo "Pomares" (2021) - embalado pelo hit "Ribanceira" - e "Estopim" (2024), o artista vem desenhando um percurso autoral marcado pela experimentação e pela recusa em se acomodar em fórmulas prontas. Se "Pomares" apresentou um compositor de sensibilidade refinada, com arranjos orquestrais inventivos e atmosfera bucólica que remetia ao folk rural brasileiro, "Estopim" trouxe uma sonoridade mais urbana e incisiva.

Agora, "Let It Burn - Deixa Arder" amplia essa proposta. O artista risca o fósforo, acende o fogo e faz sua criatividade dançar nas chamas deste trabalho, um músico inquieto que caminha à vontade por vários estilos musicais, com a mesma leveza que flana pelas ruas de Santa Teresa, o bairro onde vive.

Das 20 faixas do álbum, 16 são composições autorais de Chico Chico, incluindo parcerias e uma canção de Sal Pessoa, "Na Minha Idade". O disco também traz três releituras que funcionam como pontes entre universos culturais distintos: "Vila do Sossego", de Zé Ramalho, já lançada como single; "Girl From the North Country", de Bob Dylan; e "Four and Twenty", de Stephen Stills, gravada originalmente por Crosby, Stills, Nash & Young. E nesse território ele parece evocar a nossa saudosa Cássia.

Produzido por Pedro Fonseca, parceiro de longa data de Chicoa, "Let It Burn - Deixa Arder" é um disco que se recusa a permanecer num único lugar, tal qual o artista pro trás dele. A jornada começa com "Tanto Pra Dizer", quase um cartão de visitas, que revela uma faceta romântica do compositor com versos como  "Tanto pra dizer / Mas é difícil / Parece não haver signo algum / Eu canto pra você / E apenas isso / E isso só assim / É assim e é bom".

É a mesma atmosfera sente em "Tempo de Louças" e "Não Carece". E na dança das chamas que se espalha ao vento, Chico exerce sua autoralidade num blues ("Two Mother's Blues"); em milonga ("Lugarzinho"), com o bandoneon de Richard Scofano emprestando sofisticação ao arranjo; num groove abrasileirado ("Hora H"); num gospel ("Acaso Inevitável") e na delicada "Canção de Ninar", que junto com "Rita e Luisa" explora territórios mais lúdicos da criação de Chico.

Chico Chico canta o sentimento de sua geração em "Na Minha Idade" ("Na minha idade todo mundo tem que ser alguém / Na minha idade todo mundo tem / Uma saudade, vaidade / Vem idade e você vem"), em dueto com Ivo Vargas.

"Esse é um disco muito diverso, então cada música que o Chico me apresentava eu tinha uma ideia bem distinta de arranjo e busquei ser fiel a cada gênero, usando instrumentações apropriadas para cada um deles", comenta Pedro Fonseca.

Essa atenção aos detalhes se manifesta em faixas como "Parabelo da Existência", que conta com as participações de Josyara nos vocais e violões, Marcos Suzano na percussão e Carlos Malta no pife, numa ambientação nordestina que soa de forma orgânica. Ou na faixa-título, que passeia por sonoridades do Dixieland Jazz ("Não tem que morrer / O que se acabou / Só não caberá a nós / Alimentar o fogo / So baby, let it burn / So we can burn de novo").

O que diferencia "Let It Burn - Deixa Arder" dos trabalhos anteriores de Chico Chico é justamente essa amplitude de referências e a maturidade vocal do artista. Se em "Pomares" seu canto parecia buscar sua própria identidade, oscilando entre a herança genética de Cássia Eller e uma dicção mais pessoal, neste novo álbum Chico demonstra domínio técnico e expressivo que lhe permite transitar por tantos estilos sem qualquer traço de deslocamento nas interpretações.

Macaque in the trees
Let it Burn - Deixa Arder | Foto: Divulgação

A opção artística de um álbum extenso pode (e deve) ser vista como uma declaração de princípios. "Let It Burn - Deixa Arder" grita por ser ouvido como uma obra completa, uma travessia que só faz sentido quando percorrida do início ao fim. É um disco que confia na capacidade de atenção do ouvinte e na força da canção.