'Pai Mãe Irmã e Irmão', comédia dramática que deu o Leão de Ouro ao diretor mais 'maluco beleza' dos EUA, passa pela Mostra de SP, renovando o legado 'indie' de seu realizador
Leão de Ouro de 2025, "Pai Mãe Irmã Irmão" ("Father Mother Sister Brother") vai rugir para o público brasileiro pela primeira vez nesta quinta-feira (23). Às 18h20 desta tarde, o Cinesesc marca a chegada ao país - via Mostra de São Paulo - do longa-metragem que assegurou ao "maluco beleza" Jim Jarmusch sua maior honraria.
Concorrendo com divos autorais de gerações posteriores à sua como o mexicano Guillermo Del Toro, a húngara Ildikó Enyedi, o parisiense François Ozon e o grego Yorgos Lanthimos, o realizador mais "toca Raul" do cinema americano surpreendeu o planisfério cinéfilo ao vencer o Festival de Veneza, derrotando a claque de rivais supracitada - e sem ter a menor expectativa de vitória.
"Que merda!" foi sua expressão no palco do Lido, o epicentro do evento italiano, ao ser premiado por uma comédia dramática em três segmentos, editada pelo montador brasileiro Affonso Gonçalves. Haverá mais duas sessões dela: dia 27 (segunda-feira), às 21h40, no Cultura Artística, e dia 30 (encerramento da Mostra), às 14h, na Cinemateca.
Um elenco monumental (Tom Waits, Adam Driver, Mayim Bialik, Charlotte Rampling, Cate Blanchett, Vicky Krieps e Françoise Lebrun) eletrifica uma narrativa trifurcada, salpicada de riscos e lágrimas pelo diretor de 72 anos, encarado desde a década de 1980 como um papa da independência criativa, sem um vínculo sequer com a política dos estúdios. Cada um dos três capítulos dessa produção se ambienta no Presente e em um país diferente. "Pai" se passa no nordeste dos EUA; "Mãe", em Dublin, na Irlanda; e "Irmã Irmão", em Paris, na França. O que vemos na tela são breves estudos de personagens, numa mirada tranquila, observacional e sem julgamentos.
Essa é a linha que Jarmusch imprime desde sua entrada nas telonas. Nascido em Akron, em Ohio, Jarmusch estreou em 1980, com "Férias Permanentes", que lhe rendeu um prêmio no Mannheim-Heidelberg International Film Festival, na Alemanha. O longa seguinte, "Estranhos no Paraíso" ganhou o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno de 1984 e o troféu Caméra d'Or de Cannes.
Em ambos, ele ultrapassou os conceitos de "independência" criativa vigente, à época, nos EUA. O modo indie de filmar começou lá no fim dos anos 1950, com John Cassavetes (1929-1989), e ganhou músculos entre 1967 e 1981, com a geração Easy Rider de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma e Spielberg, que, quase em bando, fez votos de boa vizinhança com as grandes corporações. Jarmusch, não.
Se há lugar hoje na América para criadores como Sean Baker - coroado com quatros Oscars, em março, por "Anora" -, capazes de filmar com iPhone a fim de encurtar os custos, foi Jarmusch quem arou esse terreno. Um terreno onde Steven Soderbergh, Quentin Tarantino, Darren Aronofsky, Wes Anderson e Paul Thomas Anderson fincaram suas bandeiras. Por isso, a escolha do diretor de "Os Mortos Não Morrem" (longa de abertura do Festival de Cannes de 2019) pelo júri veneziano, que tinha Fernanda Torres no time, foi um aceno com a liberdade de criar, o que gera uma corrida hoje no streaming por sua obra.
"O Jim é um dos mais importantes diretores independentes do cinema americano, pois faz seus filmes sem comprometer a visão que tem", disse Affonso Gonçalves ao Correio da Manhã, por Whatsapp. "Metade desse filme novo dele fizemos remotamente: eu em LA e ele em NY. Nas últimas seis semanas trabalhamos juntos em Nova York", detalha o bamba paulista da edição, que montou "Ainda Estou Aqui" para Walter Salles, e comemorou a conquista do Oscar pelo retrato delicado da resistência à ditadura brasileira.
O tema de Jarmusch em "Pai Mãe Irmã Irmão" são laços de companheirismo. Há um lugar de honra para a lealdade em seu cinema, com destaque para "Daunbailó", concorrente à Palma de Ouro de 1986. Essa comédia em P&B mucho loca narra a convivência de presos de quinta categoria do xilindró à fuga. Um Roberto Benigni pré "A Vida É Bela" (1998) se junta a Tom Waits e John Lurie nesse estudo sobre a vadiagem num país onde time is money. A economia que interessa a Jarmusch não é essa, e, sim, a finança dos afetos.