Álbum 'As Várias Pontas de Uma Estrela' traz show da cantora no Festival Coala de 2022, dois meses antes de sua morte
Há momentos que ganham contornos de despedida sem que ninguém perceba isso naquele exato momento. E assim foi a noite de 17 de setembro de 2022. Naquela data, Gal Costa subiu ao palco do festival Coala, no Memorial da América Latina, em São Paulo, para aquilo que seria sua última apresentação pública. Menos de dois meses depois, em 9 de novembro, a cantora nos deixaria aos 77 anos, vítima de um infarto que interrompeu abruptamente uma agenda repleta de compromissos, incluindo shows na Europa e participação no Primavera Sound.
O registro daquela noite chega ao público através de "As Várias Pontas de Uma Estrela", lançamento da Biscoito Fino disponível em LP e nas plataformas digitais. O vídeo completo da apresentação pode ser conferido no canal da gravadora no YouTube até esta segunda-feira (20). O trabalho é um testemunho emocionado da relação visceral entre Gal e seu público. E neste show, realiado num festiva, prdominava uma plateia jovem, muitos deles sequer nascidos quando a cantora começou a despontar na cena musical brasileira.
Acompanhada por uma formação enxuta — Fábio Sá (baixo), Limma (teclados) e Vitor Cabral (bateria) —, a cantora percorreu vinte canções que funcionam como um mapa afetivo de sua trajetória. Sob direção musical de Marcus Preto, o roteiro equilibrou clássicos de sua discografia com faixas dos trabalhos mais recentes. Em todas elas, reina uma voz que redifiniu conceitos de interpretação na canção popular brasileira.
A abertura com "Fé Cega, Faca Amolada", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, dá estabelece o tom do que seria a apreentação. A versão pesada e vibrante da canção revela uma voz que não possui mais a potência cristalina de outras épocas, mas que conserva intacta sua capacidade de comunicação emocional. A plateia responde cantando cada palavra, num gesto de cumplicidade que se repetiria ao longo de toda a noite.
O show prossegue emendando o blues visceral de "Hotel das Estrelas", de Jards Macalé e Duda Machado, com "Divino, Maravilhoso", composição de Gil e Caetano que se tornaria hino tropicalista. Caetano Veloso, aliás, comparece em seis momentos diferentes do espetáculo, seja como compositor original ou autor de versões, reafirmando a parceria fundamental que atravessou décadas. "Dom de Iludir" surge nesse contexto, inevitavelmente diferente daquela interpretação sussurrada e sensual que Gal registrara em "Minha Voz", de 1982. As circunstâncias eram outras — um festival ao ar livre, uma multidão, não mais a atmosfera intimista de um clube enfumaçado — mas a essência permanece reconhecível.
Um dos aspectos mais bonitos do repertório escolhido é o diálogo da cantora com compositores de gerações posteriores. "Quando Você Olha Pra Ela", de Mallu Magalhães, e "Palavras no Corpo", parceria de Silva com Omar Salomão — filho do poeta Waly Salomão, que produziu o histórico show "Fatal" de Gal em 1971 —, comprovam que Gal não parou no tempo, não estacionou no sucesso qua angariou.
A sequência seguinte funciona como uma celebração dos grandes momentos de sua discografia. "Nada Mais", versão de Ronaldo Bastos para "Lately", de Stevie Wonder, antecede "Paula e Bebeto", de Milton e Caetano, num encadeamento que faz a plateia vibrar. "Desafinado", clássico de Tom Jobim e Newton Mendonça, ganha contornos mais ritmados, enquanto "A História de Lilly Braun", de Chico Buarque e Edu Lobo, e "Açaí", de Djavan, são cantadas em coro pelo público, num emocionado momento de comunhão .
O repertório também revisita a fase comercial dos anos 1980, quando Gal assinou com a RCA e gravou canções que, embora recebidas com reservas pela crítica, conquistaram o grande público. "Lua de Mel", de Lulu Santos, e "Sorte", de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos — grande sucesso nas rádios FM da época —, ganham novas roupagens em arranjos arrojados.
Dois jovens cantautores nascidos em 1991, Rubel e Tim Bernardes, são os covidaddos da noite. Rubel divide com Gal duas composições de Caetano Veloso, "Como 2 e 2" e "Tigresa", enquanto Tim Bernardes interpreta "Negro Amor", versão de Caetano e Péricles Cavalcanti para "It's All Over Now, Baby Blue", de Bob Dylan, além de "Vapor Barato", de Jards Macalé e Waly Salomão. Os três se reúnem para "Baby", também de Caetano.
O encerramento traz dois dos maiores sucessos populares de Gal: "Um Dia de Domingo", baladão soul de Michael Sullivan e Paulo Massadas que ela gravou com Tim Maia, e "Brasil", de Cazuza, Nilo Romero e George Israel. Antes desta última, a cantora faz um breve comentário sobre as eleições presidenciais que aconteceriam quinze dias depois, pedindo que o público votasse "com sabedoria" — no vídeo disponível online, ela aparece fazendo o gesto do "L" de Lula, reafirmando posicionamentos que sempre marcaram sua trajetória.
"As Várias Pontas de Uma Estrela" pode estar longe de capturar o auge vocal de Gal Costa, uma das maiores cantoras de sue tempo. Mas o álbum revela, mais que uma despedida, a gigantesca generosidade artística da intérpete e o tamanho de seu legado para a música popular brasileira. E que bom que ela nos deixa esse presente.