É da natureza do cineasta belga Joachim Lafosse cutucar os vespeiros do afeto, e, sobretudo, os marimbondos da moral, devassando a prática da pedofilia em "Um Silêncio" (2023) e o fim do desejo sob vetores do desemprego em "A Economia do Amor" (2016). Seu alvo mais recente é o sagrado exercício da maternidade, abordado com senões, mas com muito respeito em "Seis Dias Naquela Primavera" ("Six Jours Ce Printemps-Là"), que a Mostra de São Paulo exibirá nos dias 28 (no Circuito SPCine Paulo Emilio, às 15h) e 29 (no Multiplex Marabá, às 20h55). Melhor filme (disparadamente) do 73° Festival de San Sebastián, de onde saiu com prêmios de Melhor Direção e Melhor Roteiro, este estudo sobre maternidade condena suas plateias a jamais esquecerem a trilha sonora do pianista holandês Reyn Ouwehand. Sob o embalo dela, Lafosse nos apresenta uma personagem inesquecível, Sana (Eye Haïdara), jovem mãe solteira que leva seus gêmeos à vila, hoje vazia, de seus ex-sogros, na Riviera. O que começa como uma inocente pausa de primavera se transforma numa temporada de transformação.
Nesta conversa com o Correio da Manhã, o realizador de 50 anos faz uma análise geopolítica do sentimento de quem gera vidas, do lugar de escuta de quem foi um filho amado e do lugar de fala de quem trata o audiovisual como um mediador de angústias.
Qual é a mirada sobre a maternidade que guia "Seis Dias Naquela Primavera" e o que Eye Haïdara te entregou de mais poderoso no papel de Sana, a mãe coragem do teu filme?
Joachim Lafosse - Uma câmera pode olhar para qualquer coisa que se queira, mas ela só tem o direito de filmar o que vê se houver uma relação de respeito prévio. Intimidade é um direito político. Mas, firmou-se essa dinâmica respeitosa de demarcação de espaços e limites com Eye Haïdara, uma atriz incrível. Seu talento, que eu conferi na escalação do elenco, mudou toda a concepção que eu tinha dessa história que se recusa à banalidade ao falar de mãe. Minha mãe ocupou um lugar enorme na minha subjetividade. Mas a partir do momento que abracei o cinema como ofício, filmar passou a ser encontrar o MEU lugar... um lugar que eu ocupe por inteiro. Nele, resolvi contar a história de uma mulher que, na maternidade, não é um modelo, mesmo amando demais.
O que tira Sana de um lugar exemplar, de mãe modelo?
Esse lugar não existe, pois, indivíduo algum é exemplo de nada, visto que cada um de nós tem complexidades. Sana mente. Não cabe a mim julgá-la. Há motivos... dela... para isso... há vetores afetivos..., mas há uma mentira. Meu papel neste filme é deixar a plateia livre para lidar com isso como queira e fazer a sua própria sociologia. Não entro nela pela questão racial. O conflito se faz notar no momento em que os próprios filhos, pequenos, sugerem a ela que ligue para o pai deles ou para seus avós e... nada. Ela não se abre, ela não se entrega plenamente. Ela ama aquelas crianças. Essa é a relação de que não duvidamos. Esse amor, contudo, não exclui a tristeza nem isenta quem ama das suas responsabilidades.
Ao lado de Eye, você tem Emmanuelle Devos, que já esteve com você em "Um Silêncio". Como se dá essa parecia?
Não me sinto confortável com a expressão "dirigir atores", pois ela sugere um tipo de condução que reduz um processo complexo. Eu trabalho com meu elenco a partir de ensaios e proponho que ofereçam algo de diferente do que de habitual fazem.
Em San Sebastián a trilha sonora de "Seis Dias Naquela Primavera" teve um acolhimento unânime. Como se deu a composição com Reyn Ouwehand?
Não se faz cinema sem música. A trilha desse filme espelha emoções, sem excessos.