Por: Affonso Nunes

O eterno brilho de Gonzaguinha em novo disco

Sandra e Amora Pêra nos bastidores da gravação do álbum dedicado a Gonzaguinha | Foto: Isabela Espíndola/Divulgação

Após a boa acolhida de "Sandra Pêra em Belchior", lançado em 2021, a cantora e atriz retorna aos estúdios para um projeto ainda mais pessoal. Desta vez, ela dedica um álbum inteiro ao repertório de Gonzaguinha, que completaria 80 anos nesta sexta-feira, 22 de setembro, data de lançamento do disco. Intitulado "Eu Apenas Queria Que Você Soubesse", o trabalho conta com a participação especial de sua filha, Amora Pêra, fruto de seu relacionamento com o próprio compositor. O Correio ouviu as faixas e se deparou com um manifesto sonoro vibrante e emocionado, denso e lírico tal qual foi o artista homenageado.

A ideia de gravar um álbum com canções de Gonzaguinha surgiu após sugestões de amigos e da produtora Flávia Souza Lima. Inicialmente, Sandra hesitou, considerando a escolha óbvia demais. "Resisti um pouco à ideia de gravar o Gonzaga. Achei que talvez fosse óbvio demais cantar outro compositor, ainda por cima o Gonzaga, pai da minha filha", revela a intérprete.

No entanto, ao convidar Amora para dividir a produção do projeto, encontrou a motivação necessária. "Quis então que Amora encarasse comigo esta missão, e pude assisti-la trazer o imenso deste pai, tão talentoso e grandioso, para a voz de sua mãe. São letras tão lindas, tão Brasil, agora com novos olhares", explica Sandra. E assim o que parcecia óbvio, na verdade, era uma missão.

O álbum, produzido por Amora Pêra e Paula Leal, ambas integrantes do grupo Chicas, reúne participações especiais de destaque na música brasileira. Simone, Chico Chico, Regina Chaves e Dhu Moraes emprestam suas vozes ao projeto.

A abertura do disco é marcada pelo samba "Com a Perna no Mundo", que evoca as origens de Gonzaguinha no Morro de São Carlos, no Estácio, quase que uma carta de apresentação ao artista ao universo.

Sandra fez questão de incluir "A Felicidade Bate à Sua Porta", primeiro sucesso das Frenéticas, grupo que a revelou nos anos 1970. "Foi o primeiro sucesso das Frenéticas, que me fez conhecer o Gonzaga. Pedi a Regina Chaves e a Dhu Moraes que participassem comigo, já que as duas foram as primeiras amigas que chamei para serem garçonetes, quando Nelson Motta me convidou para trabalhar no Dancin' Days", relembra a cantora.

As colaborações seguem critérios afetivos e artísticos. Chico Chico divide com Sandra a interpretação de "Maravida", enquanto Simone participa de "Recado", última faixa a ser gravada. "Chico Chico disse sim prontamente ao nosso convite. A última música do disco a ser gravada foi 'Recado', com Simone dividindo comigo os vocais nesta maravilha de canção", conta Sandra. O processo de seleção do repertório envolveu um trabalho minucioso de adequação das canções à personalidade artística da intérprete. "Paula e eu procuramos entender o lugar de cada canção para a expressão e a voz da minha mãe, que tem esse lado para fora, solar, teatral", explica Amora Pêra.

Um dos momentos mais emocionantes do álbum está na na faixa-título, que reúne as vozes de Sandra, Amora e do próprio Gonzaguinha extraída de uma gravação em fita cassete, deixada anonimamente na casa de Marília Pêra, irmã de Sandra, um dia após o velório do artista, há mais de 30 anos. O material contém trechos de uma entrevista concedida pelo compositor à extinta rádio Alvorada FM. "Gonzaga pôs a música para tocar no meu ouvido, no caminho entre o quarto da maternidade e a sala de parto, sem dizer uma única palavra. Apenas me colocou para ouvir", relembra Sandra sobre o momento do nascimento de Amora.

Para a filha do casal, essa gravação possui significado fundamental em sua formação. "Essa fita foi muito importante na minha juventude, ouvia quase todo dia. Ela tem uma carga na minha fundamentação, no meu crescimento sem ele e com ele. Então, foi orgânico e natural que ela estivesse também no disco", complementa Amora Pêra. A produtora Paula Leal, amiga de Amora há mais de três décadas, define o trabalho como um exercício de proximidade e intimidade musical. "A Sandra participou efetivamente de todos os arranjos, dizendo o que gostava ou não. Fomos pensando na sonoridade faixa por faixa, e a Amora não quis ouvir de jeito nenhum os arranjos originais, tinha medo de ser influenciada", revela.

O repertório percorre diferentes fases da obra de Gonzaguinha, desde sucessos conhecidos até canções menos exploradas. Sandra justifica suas escolhas com memórias pessoais e descobertas recentes. "Escolhi cantar 'Ser, Fazer e Acontecer' porque Gonzaga me disse que a fez pensando em mim, na dificuldade que tivemos para registrar a Amora", conta a intérprete. Outras canções como "Coração", que considera uma das últimas composições do artista.

Um compositor se mantém vivo pela sua obra e este trabalho coloca a indignação e o lirismo de Gonzaguinha nos dias de hoje, comprovando o quanto sua arte é necessária a qualquer tempo. "É um disco intenso, cheio de presenças belas, que contém algo da leveza da minha mãe, mas também a intensidade do meu pai e a profundidade da nossa história", resume Amora. "É um disco freudiano, só que sem precisar passar nada limpo: a música foi o fio condutor da história", completa Paula Leal.