Antônio Candeia Filho completaria 90 anos neste domingo. Sua ausência física não ofusca o brilho que sua obra continua projetando sobre o universo do samba. Quando criança, ele lamentava que suas festas de aniversário não tinham crianças. Seu pai, um flautista amigo de Paulo da Portela, Alvaiade, Manacéa, Argemiro e outros bambas portelenses aproveitava o 17 de agosto para chamar a turma adulta para um longo pagode temperado a feijão e cachaça. Ouviu e absorveu tanto esses presentes que, aos 17 anos compôs "Seis Datas Magnas", samba-enredo que conquistou nota máxima inédita para a Portela em 1953.
Mas viver de samba? Quem conseguia? Jovem e forte, ingressou na Polícia Civil nos anos seguintes. Era durão. Prendia prostitutas e supostos malandros sem hesitar. "Ele queria ser bom em tudo. Se era policial, tinha que prender. Mais novo, como não tinha habilidade para jogar bola, foi ser centroavante rompedor. Fazia gol de ombro, do jeito que desse", contou o amigo e biógrafo João Baptista Vargens, autor de "Candeia - Luz da Inspiração" ao jornal Folha de São Paulo em 2005.
Essa combinação lhe custou caro. Na manhã de 13 de dezembro de 1965, ao retornar de uma noitada no Centro, Candeia envolveu-se em uma discussão de trânsito. Em um surto, atirou nos pneus do caminhão que colidira com seu carro. A retaliação veio em forma de cinco disparos do motorista do caminhão. Um deles, fatalmente, atingiu sua medula espinhal, deixando-o paraplégico.
Segundo Selma Candeia, filha do sambista, sua reação inicial ao acidente era o desalento. "Mas os amigos e parceiros não deixaram ele na mão. Iam pra casa dele, organizavam rodas de samba. Até aquele momento eu e meu irmão não tínhamos a compreensão do que ele significava para o samba e para música brasileira", recorda.
O que poderia ter apagado seu brilho foi, na verdade, o seu ponto de virada, inaugurando a fase mais criativa e engajada de sua obra. A cadeira de rodas tornou-se o trono de onde ele reinaria soberano sobre o partido-alto e o samba de raiz, como ele próprio poetizou na emblemática "De Qualquer Maneira": "Mesmo assim, eu sou feliz / Do meu trono eu vejo tudo / E de tudo eu participo".
Em conversa com este repórter em 2018, Monarco - contemporâneo de Candeia - contou ter convidado o amigo, em fins dos anos 1960, para ingressar na recém-criada Velha Guarda da Portela. "E eu lá sou velho para entrar em Velha Guarda", reagiu Candeia. Monarco ingressaria no grupo na condição de seu mais jovem integrante e por lá ficou até morrer, em 2021.
Fiel guardião de ricas tradições
Ainda que não se achasse velho, Candeia era sim um guardião das melhores tradições do samba. Seu primeiro álbum solo, "Candeia" (1970), marcou o início de uma discografia que serviria de farol para as gerações futuras. "Raiz" (1971) trazia uma autoralidade quase griô, com composições que remetiam à ancestralidade afro-brasileira. Em "Samba de Roda" (1975), mostrou todo seu domínio nos improvisos do partido-alto. Em "Luz da Inspiração" (1977), o inquieto artista aprofundou sua investigação sobre a identidade negra no Brasil pós-abolição. Seu último trabalho, "Axé - Gente Amiga do Samba", finalizado pouco antes de sua morte em 1978, é considerado um dos discos mais importantes da história do gênero, uma síntese perfeita da filosofia musical e política do artista.
"Dizem muito que a obra do Candeia foi se modificando a partir do acidente, mas eu acho que isso era o amadurecimento das coisas que ele escrevia. Ele modernizou o que era tradicional e foi o primeiro artista a falar de políticas afirmativas em música, isso na década de 1970, antes de qualquer outro", diz o cantor e compositor Marquinhos de Oswaldo Cruz, recitando versos do samba "Dia de Graça": "E deixa de ser rei só na folia / E faça da sua Maria, uma rainha todos os dias / E cante um samba na universidade / E verá que teu filho será príncipe de verdade".
A luz de Candeia se espalhou através de parcerias memoráveis que enriqueceram nosso cancioneiro popular. Com Paulinho da Viola, criou "Minhas Madrugadas", uma das mais belas canções do samba moderno. Ao lado de Wilson Moreira e Waldir 59, assinou sambas-enredo antológicos para a Portela, chegando a emplacar seis sambas seguidos na escola. Com Martinho da Vila, compôs "Amor Não é Brinquedo".
Em 1998, o álbum "Eterna chama - Candeia 20 anos - Memória", lançado pela gravadora Perfil Musical, trouxe a faixa "Luz de Verão", uma parceria póstuma de Candeia com Marquinhos de Osvaldo Cruz. "A música foi resgatada de uma fita cassete gravada pela Cristina Buarque e pelo Paulo César Pinheiro na casa do Candeia em que ele tocava umas melodias. Ela me sugeriu colocar uma letra e acredito que esta tenha sido a minha maior dádiva como compositor na vida".
Luiz Carlos da Vila (1949-2008) também pode se vangloriar de uma parceria póstuma com Candeia. Trata-se de "A Luz do Vencedor", faixa-título de álbum gravado pelo artista em 1998.
"Ele é eterno, mora no meu coração. Uma pessoa maravilhosa no samba, na vida e que brigava muito pela gente preta e faz muita falta nos dias de hoje", disse Tia Surica, a intérprete de "Pintura Sem Arte" e tantas outras músicas do amigo (é a cantora que mais gravou Candeia). A baluarte da Velha Guarda da Portela e presidente de honra da escola guarda na memória um momento especial com Candeia no desfile da azul e branco de 1966, quando foi uma das intérpretes do samba campeão, "Memória de um Sargento de Milícias", de Paulinho da Viola. "Foi o primeiro desfile do Candeia depois do acidente. E fomos campeões na avenida, muita emoção", lembrou.
Nas vozes de grandes nomes
Além de Tia Surica, cantores de várias gerações amplificaram o alcance da genial obra e visionária obra de Candeia: Clara Nunes, que eternizou "O Mar Serenou"; Cartola, que gravou "Preciso Me Encontrar" (de autoria erroneamente atribuída ao mangueirense ao ser lançada e posteriormente regravada por Marisa Monte e Ney Matogrosso); além de Beth Carvalho, Elza Soares, Cristina Buarque, Alcione, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Arlindo Cruz e Teresa Cristina.
Teresa, aliás, costuma afirmar que sua vida é divida em dois períodos: A.C e D.C (antes de depois de Candeia). Hipnotizada pela força de sua obra, Teresa foi a campo para tentar conhecê-lo ainda mais. Aproximou-se de João Batista Vargens, biógrafo do sambista, e da Velha Guarda da Portela. "Eu nem sonhava em virar cantora. Mas a Velha Guarda, e principalmente Monarco, me abraçou. Me dava chance nos shows. Isso eu nunca mais vou ter como pagar", disse a cantora em entrevista à repórter Bianca Lobianco em 2015. Foi nesse ano que ela compôs seu primeiro samba-enredo, justamente quando a Renascer de Jacarepaguá decidiu reverenciar o mestre em seu desfile na Sapucaí.
Mais que compositor e intérprete, Candeia pavimentou os caminhos da resistência cultural. Crítico ferrenho da comercialização desenfreada das escolas de samba, denunciava o afastamento das agremiações de suas raízes comunitárias com a chegada de pessoas vindas de fora (figurinistas, coreógrafos, artistas plásticos, entre outros que estavam "profissionalizando" o Carnaval).
Em 1975, materializou esta visão ao fundar o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, espaço dedicado à preservação da autenticidade do samba e à valorização da identidade afro-brasileira. Desfilando pelas ruas do subúrbio, a escola não participava das competições oficiais do carnaval, mas chegou a encerrar o Desfiles das Campeãs de 1978, com o memorável enredo "Ao Povo em Forma de Arte", com samba antológico de Nei Lopes e Wilson Moreira.
Resistência cultural
Neste período de rompimento com o establishment das escolas, lançou "Escola de Samba: A Árvore que Esqueceu a Raiz", um livro-manifesto escrito em parceria com Isnard de Araújo e publicado em 1977. A obra desnudou as contradições do carnaval comercial e propondo caminhos para o retorno às origens comunitárias das agremiações. Suas reflexões anteciparam debate que se intensificaria nas décadas seguintes.
Marquinhos de Oswaldo Cruz destaca que o ativismo de Candeia foi tão forte que, por pouco, não ofuscaria seu lado compositor. "Embora tivesse canções gravadas por grandes nomes de nossa música, como Clara Nunes e Beth Carvalho, sua obra andava até certo ponto esquecida. A chegada de Arlindo Cruz ao Fundo de Quintal reaproximou Candeia das gerações futuras. Arlindo tinha Candeia como grande referência e levou alguns de seus sambas para o repertório do grupo", conta.
No carnaval de 2026, uma agremiação paulistana decidiu falar de Candeia em seus enredo: a Lavapés Pirata Negro, escola fundada pelo ator Ailton Graça.
Mantido por Selma Candeia, o Quilombo manteve atividades regulares em Acari, na Zona Norte, com rodas de samba e atividades até 2022. Mas a herdeira deste magnífico legado não perde a esperança de encontrar outro espaço para organizar rodas de samba, eventos culturais e palestras para a juventude. "Meu pai sempre se bateu na questão de que as tradições do samba precisam ser passadas de geração a geração", explica Selma, que integra o conjunto Matriarcas do Samba junto com Vera de Jesus e Nilcemar Nogueira, netas de Clementina de Jesus e Cartola, que vai celebrar o repertório de Candeia no sábado (23) no Teatro Rival.
Não vejo como encerrar esse relato sobre Candeia, sua genialidade e seu legado sem os versos de Luiz Carlos da Vila para o amigo na conhecida "O Sonho Não Acabou": "O tempo que o samba viver / O sonho não vai acabar / E ninguém irá esquecer / Candeia".