Por: Affonso Nunes

Morre Arlindo Cruz, ícone do samba, aos 66

Arlindo tem sua trajetória contada pelo jornalista e produtor Marcos Salles | Foto: Washington Possato/Divulgação

O mundo do samba perdeu nesta sexta-feira (8) um de seus maiores ícones. Arlindo Cruz, cantor, compositor e instrumentista, faleceu aos 66 anos de idade. A notícia, confirmada pela mulher do artista, Babi Cruz, encerra uma trajetória de lutas pela saúde que o afastaram dos palcos, mas jamais de sua posição no Olimpo do samba e da cultura popular. Com mais de 700 músicas gravadas, uma carreira que o levou a percorrer o mundo e cerca de 3 mil gravações tocando seu banjo, Arlindo tornou-se figura central da MPB.

O músico estava internado desde março em um hospital carioca, inicialmente diagnosticado com pneumonia. Apesar de um quadro estável, ele enfrentava uma infecção por uma bactéria resistente e, segundo sua esposa, já não respondia mais aos estímulos como antes.

O velório será neste sábado (9), na escola de Samba Império Serrano, em Madureira. Primeiramente terão acesso os parentes e amigos mais próximos, depois o público poderá se despedir do artista.

A saúde do sambista foi severamente comprometida em 2017, quando sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico. O episódio mudou drasticamente sua rotina, exigindo cuidados especializados e a dedicação incansável da família, em especial de Babi Cruz, e de seus filhos, Arlindinho e Flora. Embora houvesse sinais de melhora em relação ao quadro inicial, o AVC deixou sequelas profundas que o impediram de retornar às suas atividades artísticas.

Um sambista nato

Nascido em 14 de setembro de 1958, o carioca Arlindo Cruz consolidou-se como uma das vozes mais autênticas e um dos compositores mais prolíficos do samba. Sua jornada musical começou cedo, nas rodas de samba da juventude, onde desenvolveu seu talento como instrumentista e letrista. Ao se destacar nos improvisos durante as lendárias rodas aos pés da tamarineira da quadra do Cacique de Ramos, Arlindo ingressou no grupo Fundo de Quintal, assumindo o lugar de ninguém menos que Jorge Aragão. 

Sua maestria na composição rendeu obras-primas entoadas por grandes nomes da música brasileira. É o caso de "Meu Lugar", "Ainda é Tempo Para ser Feliz" e "Bagaço da Laranja", que ganharam as vozes eternas de Beth Carvalho e Zeca Pagodinho, entre outros. Além disso, Arlindo foi um importante autor de sambas-enredo para a sua escola de coração, a Império Serrano.

Macaque in the trees
Arlindo Cruz e Sobrinha, amigos desde o Fundo de Quintal: parceria frequente | Foto: Divulgação

Nos anos 1990, Arlindo deu início à sua carreira solo após deixar o Fundo de Quintal, consolidando-se como um artista de sucesso com milhares de discos vendidos. Nessa mesma década, formou uma parceria memorável com o sambista Sombrinha, outro colega do Fundo de Quintal.

Já nos anos 2010, sua popularidade se expandiu ainda mais com a participação em programas de televisão, como o "Esquenta!", comandado por Regina Casé, que o levou a um público ainda mais vasto e o consagrou como o "sambista perfeito", como ele próprio gostava de se definir.

Seu legado recebeu, ainda em vida, reconhecimento na robusta biografia "O Sambista Perfeito" (Ed. Malê), escrita pelo jornalista e produtor Marcos Salles, um amigo de longa data do sambista. A obra vai muito além de curiosidades sobre o artista para conduzir o leitor a uma jornada adentro da história pessoal do compositor, revelando detalhes da relação amorosa com Babi, e aspectos da intimidade do casal que nunca foram expostos publicamente. Mais do que isso, o livro constrói um retrato da superação de um artista que, nas palavras do próprio biógrafo, "é um negro e gordo, que foi pobre e venceu".

O trabalho de apuração de Salles, que já havia lançado obra sobre a trajetória do Fundo de Quintal, impressiona pelo fôlego. O autor entrevistou 120 pessoas, construindo um mosaico de depoimentos que inclui desde grandes nomes da música brasileira como Maria Bethânia, Zeca Pagodinho e Maria Rita, até figuras da televisão como Regina Casé, além da família do compositor um painel de vozes que revelando as diferentes facetas do artista. "Eu conheci o Arlindo há muito tempo. nada me surpreendeu nos depoimentos, mas foi bacana saber a visão das pessoas que ouvi sobre ele. e praticamente todos destaca a sua generosidade,o que ele fazia pelas pessoas. Ela ajudou muita gente, estava sempres querendo novos parceiros para compor e não tinha isso de que o cara não fosse conhecido. Essa generosidade maior do que o prório Arlindo", disse Salles a este repórter por ocasião do lançamento do livro.

"Arlindo não é só um sambista, ele é o samba em toda sua amplitude: na religião, na comida, no dia a dia, na maneira de ver e conduzir a vida", descreve o cantor e compositor Rogê, um de seus parceiros mais recentes, na apresentação do livro.

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Vitimado pelo AVC, o sambista recebe o carinho dos filhos Flora e Arlindinho | Foto: Reprodução/Instagram

Mais que um sambista, Arlindo era dono de uma filosofia de vida. Um exemplo desse jeito Arlindo de ver a vida é sua concepção do samba como veículo de alegria. "Gosto do povo cantando! Sou a favor do refrão! Samba não tem que ter só essa preocupação social, tem que ter alegria. Samba é alegria", dizia o compositor, definindo sua missão artística como a busca por "dar um pouquinho de mim pro povo ficar feliz e se lembrar de mim com alegria". A partida de Arlindo Cruz deixa uma lacuna imensa na nossa cultura, , mas seu legado continuará ecoando em cada roda de samba e na memória de milhões de brasileiros.