Por: Affonso Nunes

O início, o fim e o meio

Raul Seixas (D) compôs com Paulo Coelho a maioria das canções de 'Gita', relançado em vinil comemorativo | Foto: Fotos/Divulgação

Uma conversa noturna entre Raul Seixas e Paulo Coelho no sítio da família do cantor em Dias d'Ávila, na Bahia, mudaria para sempre a trajetória do rock brasileiro. Era 1973, e a dupla desfrutava do sucesso de "Krig-ha, Bandolo!" quando o diálogo chegou ao texto sagrado hindu "Bhagavad-gita". Daquele momento nasceu, em menos de dez minutos, a letra completa de "Gita", canção que daria nome e tom místico ao álbum histórico lançado no ano seguinte. Agora, em celebração aos 80 anos do baiano, completados em 28 de junho, a Universal Music Brasil relança o disco no formato LP, numa edição especial prensada em vinil vermelho.

O álbum "Gita", de 1974, representa um marco na discografia de Raul Seixas e na música popular brasileira. Mais que um conjunto de canções, o trabalho foi o manifesto de uma nova proposta de organização social, a Sociedade Alternativa, que questionava autoridades e instituições em plena ditadura militar. A capa icônica, com Raul de guitarra e boina vermelhas, dedo em riste diante do microfone, projetava a imagem de líder guerrilheiro e guru que se consolidaria a partir dali.

O trabalho reúne doze faixas que orbitam em torno dos ideais da Sociedade Alternativa, desenhada a partir dos ensinamentos do ocultista britânico Aleister Crowley. Das doze composições, oito são parcerias oficiais de Raul e Paulo Coelho, embora o autor de "O Alquimista" reivindique a autoria solitária de "Medo da chuva". Todas convergem para a ideia central sintetizada nos versos que se tornaram lema: "Faze o que tu queres/ Pois é tudo da lei".

Apesar do núcleo místico e das ambições revolucionárias, o disco não abandona o humor ácido tão característico na obra do Maluco Beleza. Raul também não tinha qualquer intenção de criar manifestos herméticos para iniciados. Seu objetivo era alcançar o sucesso popular e comunicar com as massas. Como ele próprio declarou em entrevista de 1974: "Eu escolhi o caminho da música por ser o meio mais fácil de chegar ao povo. Abandonei o livro porque o Brasil não lê. Eu faço música comercial. Botei oitenta e cinco músicas na parada de sucesso e quero continuar botando".

Essa comunicação direta se manifesta já na abertura com "Super heróis", onde Raul decreta feriado em plena segunda-feira e desfila, em tom debochado, ídolos pop da época como Silvio Santos, Mequinho, Émerson Fittipaldi e Pelé. "Medo da chuva" questiona a instituição do casamento, enquanto "As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor" - apontada pelo próprio cantor como sua favorita no disco - combina rock'n'roll e raiz nordestina no estilo que se tornaria sua assinatura.

Macaque in the trees
'Gita', álbum de Raul Seixas, em sua nova edição em vinil vermelho | Foto: Divulgação

"Sociedade Alternativa" é síntese do trabalho, oscilando entre o épico e o nonsense. A faixa se tornou um dos símbolos de Raul e, mesmo com sua proposta revolucionária em tempos autoritários, ganhou clipe no "Fantástico" da TV Globo. Em 2013, reafirmou sua força quando Bruce Springsteen a cantou no Rock in Rio, demonstrando sua permanência no imaginário musical brasileiro.

"Trem das 7" fascina por sua linguagem interiorana que cresce em direção à imponência final, cruzando memórias da infância com referências apocalípticas. A ideia do bem e do mal de braços dados reflete a influência do ocultista Aleister Crowley (1875-1947). "S.O.S" dialoga com "Ouro de Tolo" na denúncia do vazio existencial da classe média, enquanto "Prelúdio" adapta um texto erroneamente atribuído a Cervantes sobre sonho e realidade.

O álbum se encerra com "Não pare na pista", composta na mesma viagem ao sítio onde nasceu "Gita", inspirada nas placas de estrada. A mensagem permanece atual: não ficar parado enquanto a vida e o mundo seguem velozes. Aos 80 anos de Raul Seixas, o chamado final da canção ressoa com a mesma urgência: "Meu bem, me dê a mão / Que eu vou te levar / Sem carro e sem medo / Pra outro lugar".