Por: Affonso Nunes

Bossa Nova é coisa do passado? Wanda Sá prova que não

Wanda Sá, uma das vozes que marcaram o movimento nos anos 60, grava um álbum que mostra a vitalidade da bossa nova | Foto: Marcos Hermes/Divulgação

A pergunta ecoa há décadas: por que não se compõe mais bossa nova? Por que um gênero tão atemporal permanece cristalizado no repertório criado entre 1958 e meados dos anos 1960? Wanda Sá oferece uma resposta oportuna com "Wanda Sá 80", álbum lançado pelo selo Biscoito Fino que reúne oito composições inéditas criadas especialmente para celebrar seus 80 anos de vida e seis décadas de carreira.

O trabalho pode ser definido como uma ponte geracional, conectando veteranos fundadores do movimento como Roberto Menescal, Carlos Lyra e João Donato com os chamados "filhos" da bossa nova - Marcos Valle, Abel Silva, Ronaldo Bastos, Jards Macalé, Cristóvão Bastos, Joyce Moreno e Paulo César Pinheiro - e chegando até representantes de uma terceira geração, como Romulo Fróes, Bena Lobo e Nando Reis.

Esta diversidade demonstra a vitalidade criativa do gênero e sinaliza para sua capacidade de renovação sem perder a essência.

 

Bossa: nova e eterna

Wanda Sá tem no álbum as participações especiais de Joyce Moreno, Jards Macalé, Bebel Gilberto e os filhos Isabel e Bernardo Lobo | Foto: Marcos Hermes/Divulgação

Aabertura do álbum com "Não Pergunte Demais", de Roberto Menescal e Abel Silva, estabelece imediatamente o tom: uma bossa nova clássica que evoca o Rio de Janeiro em abril, com toda a poesia urbana e melancolia suave que caracterizam o gênero. O arranjo de Antônio Adolfo, pontuado por convenções sofisticadas já na introdução, prepara o terreno para a voz de Wanda, que mantém intacta a elegância e precisão que a consagraram.

Entre os presentes mais preciosos do álbum estão as últimas composições deixadas por mestres recentemente falecidos. Carlos Lyra, reconhecido como o maior melodista da bossa nova, legou "O Tom do Amor", um samba de melodia irresistível com letra de Ronaldo Bastos que situa a narrativa entre o Posto 6 e o Arpoador, território sagrado do movimento. A participação de Isabel Lobo, filha de Wanda, adiciona uma dimensão emocional especial, revelando uma afinidade vocal comovente que ecoa a suavidade da jovem Wanda dos anos 1960.

O saudoso João Donato contribuiu com "Juntinhos", uma composição que exemplifica perfeitamente a sofisticação harmônica da bossa nova: estrutura complexa repleta de modulações que resulta numa simplicidade viciante. Nando Reis captou com precisão o espírito donatiano na letra, construindo uma história de amor etérea através de uma sequência de verbos que cria um efeito quase hipnótico. A participação de Bebel Gilberto, literalmente filha da bossa nova, divide com Wanda o quebra-cabeça melódico numa interpretação que honra o legado do compositor.

O álbum surpreende pela capacidade de atrair criadores normalmente associados a outras estéticas. Jards Macalé, conhecido por sua criatividade dionisíaca, assume uma postura apolínea em "A voz de sal", parceria com Romulo Fróes que resulta numa bossa nova clássica - moderna, praiana e metalinguística, mas de leveza desconcertante. Cristóvão Bastos oferece "Foi sim", melodia complexa e belíssima com acordes dissonantes e letra romântica de Abel Silva que equilibra leveza e melancolia.

A dimensão familiar ganha destaque em "Valsa nova", presente do filho compositor Bernardo "Bena" Lobo, que morava em Portugal até recentemente. A saudade materna e a primeira parceria musical entre mãe e filho inspiraram Wanda a escrever a letra, numa rara incursão como compositora que remonta a "Encontro", parceria com Nelson Motta em seu disco de estreia. O resultado é literalmente uma valsa bossa nova, com participação vocal do próprio Bena.

Joyce Moreno, natural de Copacabana como Wanda e representante da mesma geração, contribui com "Se solta, coração", parceria com Paulo César Pinheiro que trata da espera de um novo amor com a suavidade característica do gênero. As duas dividem a interpretação de forma tocante, como se toda uma geração cantasse em uníssono. Em contraponto, "Só desalento" aborda o fim de um relacionamento, mas tanto a letra de Nando Reis quanto a música de Marcos Valle mantêm a mesma leveza e qualidades melódicas, demonstrando que a bossa nova é fundamentalmente um ponto de vista sobre a vida e a música.

A produção musical reflete a mesma diversidade geracional dos compositores. Wanda convocou arranjadores de sua época como Antônio Adolfo, Dori Caymmi e Cristóvão Bastos, da geração seguinte como Celso Fonseca e Jessé Sadoc, chegando até nomes mais jovens como Guto Wirtti. Esta mistura resulta numa sonoridade que preserva a autenticidade histórica enquanto incorpora elementos contemporâneos.

Mesmo a única faixa que não é propriamente bossa nova, a canção religiosa "Ame ao senhor", que reflete o cristianismo pessoal de Wanda, recebe tratamento bossanovista no arranjo de Adriano Souza e na interpretação da cantora. Esta coerência estética demonstra como o gênero transcendeu suas fronteiras originais para se tornar uma linguagem musical universal.

Wanda Sá ocupa posição única no cenário da bossa nova contemporânea. Participou do movimento original, lançou clássicos como "Inútil paisagem" e "Vagamente", manteve viva a memória do gênero através de décadas e continua divulgando-o em turnês anuais pelo Brasil, Estados Unidos, Europa e Japão. Sua imagem na capa do LP "Wanda vagamente" de 1964, caminhando pela areia de Ipanema com o violão, permanece como síntese perfeita do movimento.

"Wanda Sá 80" celebra ao mesmo tempo uma carreira, um gênero musical genuinamente brasileiro e um legado, provando que a bossa nova não apenas permanece viva, mas continua capaz de renovação criativa sem perder sua essência. Quando surgirem novamente questionamentos sobre a ausência de novas composições no gênero, este disco oferece resposta definitiva: a nova bossa nova está aqui, nova e eterna.