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Delírios revisitados de Campos de Carvalho

A Lua vem da Ásia | Foto: Hernane Cardoso/Divulgação

Quase quinze anos depois de sua primeira montagem, Chico Diaz retorna ao universo perturbador de Campos de Carvalho (1916-1998) com uma nova versão de "A Lua Vem da Ásia". O monólogo, que estreia no Teatro Vannucci neste sábado (5), traz ajustes que o próprio ator considera necessários para dialogar com os tempos atuais, mantendo intacta a força provocativa do texto original do escritor mineiro, um dos expoentes do surrealismo na literatura brasileira.

Originalmente publicada em 1956, a obra constrói um retrato desconcertante da condição humana através do relato de um homem que acredita estar hospedado em um hotel de luxo, quando na verdade encontra-se confinado em uma instituição. Entre devaneios e escrita compulsiva, o protagonista — que assume múltiplas identidades como Adilson, Leonildo, Astrogildo ou Ruy Barbo — registra suas memórias com a pretensão grandiosa de contribuir para a cultura universal. A descoberta gradual sobre sua real situação serve como metáfora para questões mais amplas sobre lucidez, loucura e a natureza absurda da existência moderna.

"As mudanças são para contextualizar o momento histórico que nós vivemos e também tornar mais leve e mais palatável. A obra continua contundente, oportuna, reflexiva, bem humorada, ela tem umas questões do mundo moderno a serem discutidas", explica Chico Diaz. O ator, que também assina a adaptação, buscou preservar a essência crítica do texto original enquanto o tornava mais acessível ao público contemporâneo, adicionando elementos de leveza e humor sem comprometer a densidade reflexiva da obra.

Estruturado como um diário em cena, o espetáculo se divide em duas partes distintas. Na primeira, denominada "percurso do Eu", o protagonista explora as múltiplas vozes que habitam sua mente, revelando a complexidade de sua psique fragmentada. A segunda parte o conduz ao "percurso pelo mundo", onde confronta uma realidade externa tão ou mais absurda que sua própria condição mental. Essa estrutura permite ao público acompanhar tanto a jornada interior quanto a percepção distorcida que o personagem tem do mundo ao seu redor.

O texto de Campos de Carvalho, que o próprio autor definia como "um gigantesco grito lançado sobre a vulgar balbúrdia cotidiana", mantém sua relevância crítica décadas após sua criação. A obra funciona como uma lente de aumento sobre as contradições e absurdos da civilização moderna, utilizando o delírio como instrumento de análise social. O personagem narrador, embora confinado fisicamente, viaja pelo imaginário para geografias improváveis, encontrando na linguagem seu único meio de escape e libertação.

"Além de ser uma referência na literatura brasileira, nós termos um surrealista testemunha dos tempos é curioso como os tempos continuam atuais. Ou seja, a obra se mantém atualíssima no que diz respeito à lucidez confrontada com a barbárie dos tempos atuais", observa Chico Diaz. Para o ator, a peça oferece uma oportunidade valiosa de debate sobre questões fundamentais como liberdade, prisão, saúde mental e racionalidade civilizatória, temas que ressoam com particular intensidade no contexto contemporâneo.

O espetáculo convoca o público como ouvinte atento das memórias e reflexões do protagonista, estabelecendo uma relação de cumplicidade que transcende a simples observação teatral. Nesse jogo entre realidade e delírio, entre lucidez e loucura, "A Lua Vem da Ásia" propõe uma experiência teatral que desafia as percepções convencionais sobre normalidade e marginalidade social.

Com uma extensa carreira no cinema, teatro e televisão, Chico Diaz foi reconhecido pelo conjunto de sua obra e contribuição à cultura brasileira ao receber em maio a Ordem do Mérito Cultural.

SERVIÇO

A LUA VEM DA ÁSIA

Teatro Vannucci (Shopping da Gávea - Rua Marquês de São Vicente, 52 - 3º andar)

De 5/7 a 31/8, sábados (20h30) e domingos (19h30)

Ingressos: R$ 120 e R$ 60 (meia)