Mais de duas décadas após ter conquistado palcos e pistas com sua mistura efervescente de ritmos e discursos sociais, o grupo Farofa Carioca ressurge com força total. O álbum "Moro no Brasil", lançado originalmente em 1998, chega às plataformas digitais pela primeira vez, em versões remixadas, remasterizadas e com tecnologia Dolby Atmos. O relançamento é fruto de uma parceria entre a Universal Music Brasil, Seu Jorge e Gabriel Moura, fundadores do grupo, e antecipa ainda uma edição em vinil do disco.
Revisitar o álbum foi, segundo Gabriel, uma experiência intensa. "Foi fascinante examinar os arquivos originais, mixar e masterizar usando os recursos tecnológicos de hoje; é como abrir uma janela no tempo 27 anos depois", conta. Seu Jorge completa: "É um prazer enorme podermos dar acesso à juventude a esse trabalho que foi tão importante para nós".
O grupo se destacou ao longo dos anos por sua inventividade sonora e espírito irreverente. Com base no samba, o Farofa incorporava soul, funk, reggae, forró, jongo, hip-hop e pop — tudo com a pegada das big bands de gafieira e a energia do Movimento Black Rio. "Queríamos causar impacto, divertir, fazer uma espécie de fanfarra carioca", lembra Seu Jorge. Os shows misturavam música e performance, com pernas-de-pau, malabaristas, acrobatas e até números de trapézio, refletindo a origem teatral do grupo, nascido nos bastidores da UERJ e nas ladeiras de Santa Teresa.
Formado por músicos de diferentes pontos do Rio de Janeiro, o Farofa uniu subúrbio e zona sul, teatro e música, festa e denúncia social. Em um Brasil que se reerguia do autoritarismo e se abria para novas utopias, a banda foi espelho das contradições do país. "Vivíamos um momento de autoestima, consciência política, ambiental. A nova Constituição, a queda do Collor, o dólar um para um, tudo isso influenciava. Mas também havia Candelária, Carandiru, massacres e corrupção. A música era a nossa forma de lidar com tudo isso", contextualiza o músico.
Essa complexidade está impressa nas faixas do álbum. A faixa-título, "Moro no Brasil", sintetiza o espírito da banda com seu samba-funk carnavalesco e crítica social: "Não sei se moro muito bem ou muito mal… a inteligência é fundamental", avisa o refrão. Em "São Gonça", um hit imediato, o romantismo suburbano ganha voz. Já "Bebel" traz um groove-rap com metais afiados e coro contagiante.
Temas sociais e raciais se impõem de maneira contundente. Em "A Carne", reggae com participação de Fagner e verso imortalizado depois por Elza Soares — "A carne mais barata do mercado é a carne negra" —, o grupo aborda o racismo estrutural. Em "A Lei da Bala", une funk carioca, storytelling e crítica à violência urbana. E em "Jacaré", Seu Jorge lança versos ácidos sobre corrupção política e desigualdade: "Tiram onda com o seu dinheiro de contribuinte o ano inteiro".
O disco também trata de temas identitários e indígenas. A provocativa "Índio", dedicada ao líder Galdino, assassinado em Brasília, mescla rock, psicodelia, citações da ópera "O Guarani" e locuções de rádio em um arranjo que atravessa o tempo. "Timbó", samba de terreiro gravado por Jamelão em 1957 e regravado pelo grupo, conecta a ancestralidade africana à espiritualidade popular. "O arranjo de cordas é do Maestro Paulo Moura, meu tio, que também faz o solo de clarineta. É uma faixa de grande força simbólica", destaca Gabriel.
A sequência final do álbum reforça o olhar do grupo para a realidade urbana. "Rabisca Robson" retrata a juventude envolvida com drogas com linguagem teatral e sample de Jair Rodrigues. "Menino da Central", com participação de Sivuca na sanfona, homenageia os jovens ambulantes da estação Central do Brasil. O Farofa soube aproximar a arte das vivências do povo, mas sem abrir mão da sofisticação musical.
Em 2023, a banda voltou aos palcos com show especial no Rio de Janeiro, agora com Mário Broder no vocal. A apresentação emocionou Seu Jorge, que viu suas filhas presenciarem, pela primeira vez, o grupo em ação. "Elas cresceram me ouvindo falar do Farofa. Verem esse show foi muito especial", diz.
Com 28 anos de estrada, o Farofa Carioca segue reunindo Bertrand Doussain (flauta), Carlos Moura (trombone), Gabriel Moura (voz e violão), Mário Broder (vocal), Sandrinho Carioca (percussão), Sérgio Granha (baixo), Seu Jorge (voz e guitarra), Valmir Ribeiro (cavaquinho) e Wellington Coelho (percussão). Enquanto novos shows não são anunciados, "Moro no Brasil" já pode ser ouvido em streaming. "Hoje o jovem tem outros estímulos, outras formas de vivência e filtros de informação, mas acredito que os temas do álbum continuam pertinentes e sensíveis para todos nós".