De que forma surgiu o convite para produzir o primeiro disco da Legião Urbana? Você tinha experiência prévia em produção fonográfica?
José Emílio Rondeau: Minha única experiência produzindo disco até então foi adquirida no ano anterior, em 1983, quando trabalhei com o Camisa de Vênus em seu álbum de estreia. Sou "especialista" de primeiros álbuns: depois da Legião, fiz o disco de estreia de May East, ex-Gang 90, e do Picassos Falsos. Mesmo sendo super novato, bati na porta de Jorge Davidson, diretor artístico da EMI-Odeon, e me ofereci para produzir o disco da Legião, porque soube que tinham sido contratados pela gravadora. E ele topou. O que não deixou de me surpreender, mas era a resposta que eu queria receber.
E o que você conhecia da banda antes de começar a trabalhar com eles?
Apesar da Legião já ter uma carreira de shows e fitas demo, de ser tocada no programa Rock Alive, de Mauricio Valladares, na Rádio Fluminense, apesar de já ter lido sobre ela na matéria que Hermano Vianna tinha feito para a revista Pipoca Moderna, que ajudei a fundar e a editar, nunca tinha ouvido o som dela até receber a fita demo que chegou a minhas mãos através de Tom Leão. E só vi como era a cara deles na hora em que nos conhecemos pela primeira vez no estúdio, no primeiro dia de gravação.
Quais eram as suas primeiras impressões sobre Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá em estúdio? Havia um alinhamento claro entre o som que a banda queria e o que a gravadora esperava?
Eles tinham suas convicções e a gravadora, obviamente, tinha as dela. O desafio foi achar os pontos de convergência e fazer um disco representativo do artista, da sua música e da sua verdade. O que veio através de muito trabalho, muita conversa, e muita tentativa e erro.
Ou seja, você e a gravadora tentaram dar ao disco um som mais limpo e pop, mas enfrentaram um certo purismo da banda. Como foi lidar com essa tensão estética?
A Legião entrou no estúdio de um jeito e saiu dele, com o disco pronto, de outro. Aquela banda punk rock de raiz evoluiu imensamente durante os meses de gravação, deixando aflorar todas suas qualidades. E mostrou-se capaz de romantismo, lirismo, moldando uma sonoridade pop poderosíssima, e fez um disco variado, multifacetado, apresentando ao público tudo aquilo do que era capaz e exibindo qualidades que só vieram à tona por completo na medida em que foram se sentindo mais à vontade no estúdio.
A partir de que momento específico você sentiu resistência da parte deles em aceitar direção externa?
O processo de gravação de um disco tem concordâncias e divergências, êxtase e ranger de dentes. As convicções deles eram pétreas, e muitas vezes se assustaram com o que a gravadora idealizava para eles – uma sonoridade próxima daquela de outro artista de seu elenco, Bob Seger, que fazia, naquele momento da carreira dele, um country-rock bem distante do som da Legião. Mas o impasse foi rompido pela mera concordância de se usar violões em algumas das faixas, que acabaram crescendo muito graças à adição do instrumento, como "Será", "Baader-Meinhof Blues" e "Geração Coca-Cola". E, se você for ver, o violão esteve bem presente nos discos que a Legião gravaria dali por diante.
A crise durante a madrugada chuvosa de 1984 é parte do folclore da Legião. Renato Russo não queria gravar às linhas de baixo para se dedicar completamente aos vocais, criando um impasse no estúdio. O que, de fato, aconteceu? Você chegou a cogitar abandonar a produção definitivamente, não foi? O que te fez voltar?
Lembro apenas um pouco do que aconteceu no estacionamento da EMI-Odeon, quando Renato e mais alguém (não sei se Bonfá ou se Dado) foram para me fazer mudar de ideia. O relato mais completo do que se deu está no livro graças à lembrança que Fernanda Villa-Lobos – à época empresária da banda – ainda retém do episódio. Decidi voltar – no dia seguinte, com todos de cabeça fria – depois do compromisso de Renato de que dali para frente tudo seria diferente. E foi.
Como foi a decisão de trazer Renato Rocha para gravar as linhas de baixo? Foi uma escolha sua, da banda ou da gravadora?
A entrada de Negrete nasceu de uma decisão da própria banda. Quando conheci a Legião, ele já fazia parte do grupo nas apresentações ao vivo.
Há registros de músicas ou arranjos descartados na época? Algo que ficou pelo caminho?
Sim. O primeiro resultado palpável da gravação foi um tema instrumental eletrônico, tecnopop e dançante, composto e gravado por Renato sozinho. Considerei um sucesso potencial e cogitei lançar aquela música – uma vez pronta – como o primeiro compacto da Legião. Mas a banda ficou horrorizada com a ideia, engavetou a música e ela nunca foi concluída. Uma decisão acertadíssima, porque teria sido um erro apresentar a Legião ao mundo com aquela música, que, daquele jeito, nada tinha a ver com a banda. No entanto, ela ressurgiu futuramente, abrindo o segundo disco da Legião, rearranjada com baixo, guitarra e bateria, agora com o nome de "Daniel Na Cova Dos Leões".
O disco saiu sem grande campanha inicial. Como você viu a resposta do público? Em que momento você percebeu que aquele álbum poderia virar um marco na música brasileira?
O disco demorou a pegar. Saiu na ressaca do Carnaval. A coisa só engrenou mesmo depois que as rádios começaram a tocar "Será". Logo em seguida, chegou a vez de "Ainda É Cedo". Ali eu percebi que o disco estava sendo bem aceito. Mas a verdadeira dimensão dele só ficou clara bem mais adiante, quando a Legião tornou-se aquilo que conhecemos hoje em dia.
Se pudesse voltar àquelas sessões, faria algo diferente?
Sempre a gente pensa naquilo que poderia ter feito diferente – baixo mais turbinado, mais eco na voz, mais detalhes de guitarra – , mas o disco é o disco que ele é, e tenho muito orgulho dele como é.
Além da Legião, o rock brasileiro revelou um universo de bandas nos anos 1980 e 1990. Ainda se vê os Titãs, o Capital Inicial, Titãs, Ira! e Barão Vermelho, mas a renovação é tímida em relação ao grande público. O que aconteceu? O rock errou?
Hoje você tem um cenário muito mais pulverizado, nichos e mais nichos, e o quadro hoje é até mais variado, com artistas desde o Boogarins ao Black Pantera, do Carne Doce ao Lestics, do Tagua Taguá a Cigarras. Todos têm seu público e operam dentro de seus parâmetros, com um nível de independência e acesso a meios de produção, distribuição e divulgação que não existiam em 1984.