Bunker para o debate estético nas linguagens do audiovisual, com foco em narrativas avessas a clichês e moralismos, o festival Olhar de Cinema de Curitiba escolheu abrir sua programação de 2025 pelas vias do suspense, tateando as veredas do medo pelas franjas da cultura digital ao exibir "Cloud - Nuvem de Vingança". Kiyoshi Kurosawa, seu realizador, é um dos medalhões do assombro no audiovisual há quase três décadas.
Nascido em Kobe, no Japão, há 69 anos, ele lançou três filmes em 2024 e não se cansa de imaginar histórias de morte (muitas delas com celebrações da vida), coroadas com prêmios nas maiores maratonas cinéfilas do planeta. Daí ser o abre-alas do evento paranaense, que reúne longas e curtas-metragens independentes de todo o mundo, ocupando as salas do Cine Passeio, do Teatro da Vila, da Cinemateca de Curitiba e (pela primeira vez) o Cine Guarani, além de utilizar a Ópera de Arame, famoso espaço teatral, em seu arranque, esta noite.
Egresso de uma pátria que produziu titãs como Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, Hayao Miyazaki e Akira Kurosawa, de quem é xará de sobrenome, embora sem qualquer parentesco, Kiyoshi é um artesão do terror e do thriller, filão que impera em sua obra. Em fevereiro de 2024, ele eletrizou os nervos da Berlinale, na Alemanha, com um média-metragem de 45 minutos, "Chime", no qual um professor sente calafrios ao ouvir um ruído misterioso. Em setembro passado, o diretor partiu para o norte da Espanha, para a competição oficial do Festival de San Sebastián, onde concorreu ao troféu Concha de Ouro com "Le Chemin Du Serpent", no qual um jornalista e uma médica se unem para se vingarem de uma organização criminosa.
Convocado para inaugurar um Olhar de Cinema que presta tributo à realizadora Agnès Varda (1929-2019) e projeta uma série de títulos brasileiros inéditos, "Cloud - Nuvem de Vingança" abriu sua trajetória nas telas no Festival de Veneza, em sessão hors-concours. Sua trama está ligada aos bastidores do comércio digital na internet. No enredo, o jovem Yoshii (Masaki Suda) revende produtos na web. Ele negocia material cirúrgico, malas de mão, estatuetas... tudo o que possa vender para obter lucro. Ele compra barato para vender caro, às vezes, caro demais. Aos poucos, cada vez mais clientes sentem-se prejudicados e se unem para fazê-lo pagar o preço por sua ganância. Essa premissa rende situações eletrizantes, com a marca autoralíssima de Kiyoshi, que deixou a terra das gôndolas com o prêmio de Melhor Direção, em 2020, por "A Mulher de um Espião".
"Num ambiente de suposta tranquilidade, onde o silêncio é melodia, qualquer ruído pode tirar a plateia da sua zona de conforto e convidá-la ao assombro. É assim que a tradição do terror se fez no Japão: transgredindo a normalidade que as aparências constroem. Quanto mais o seu universo de ação for cotidiano e corriqueiro, com gente supostamente comum, sem ninguém extraordinário, mais você pavimenta o caminho para a surpresa", disse Kiyoshi ao Correio da Manhã em Berlim.
Sua circulação pelo cinema de gênero muitas vezes se pauta pela estranheza, se vê em cults como "Pulse" (2001) e "Creepy" (2016). Vez ou outra, ele navega pela seara do melodrama, deixando a brutalidade de lado, como é o caso de "Sonata de Cannes" (Prêmio do Júri na mostra Un Certain Regard de Cannes, em 2008), hoje em cartaz na plataforma MUBI. O pavor e o assombro, contudo, seguem sendo sua principal forma de expressão.
"Um certo sentimento de perda reside em todas as minhas narrativas, pois tenho interesse em entender que inquietudes eu encontro diante do que existe de mais uniforme e de mais recorrente na sociedade japonesa, a de ontem e a de hoje", disse Kiyoshi ao Correio quando iniciou as filmagens de "Cloud - Nuvem de Vingança". "Existe aqui uma constante fricção entre a inércia e a transformação, mas nem sempre a inércia se conecta com a tradição. Enquanto nossas miopias morais nos impedirem de perceber o Mal que está ao nosso redor, sob o disfarço de códigos de conduta rigorosos, o cinema de suspense vai existir e há de seguir a arrebatar pessoas".
Nesta quinta, o Olhar de Cinema exibe o esperado "Tardes de Solidão", do catalão Albert Serra, que ganhou a Concha de Ouro de San Sebastián de 2024 ao retratar o dia a dia de um toureiro sem glorificar a tradição da tauromaquia.