Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Uma espiadinha na exclusão

O documentário 'Ernest Cole, Lost and Found' rendeu a láurea L'Oeil d'Or a seu realizador, o haitiano Raoul Peck | Foto: Divulgação

Agendado pelo Festival de Cannes para sábado, na seção Première "Orwell: 2 2=5" é uma porta aberta para um enigma da prosa mundial ao devassar o legado político do autor de "1984" e "A Revolução dos Bichos". A Croisette vai "reler" a obra do inglês nascido na Índia (de colonização inglesa) George Orwell (1903-1950) à luz do haitino Raoul Peck, um documentarista que fez da segregação seu norte. É forte a chance de ele sair de lá premiado, no pódio de bicampeão do troféu L'Oeil d'Or, Palma do evento dada a narrativas de não ficção. Ele ganhou a láurea em 2024 com "Ernest Cole, Achados e Perdidos. Sua estreia por aqui será no dia 29 deste mês.

Em outubro, enquanto dava retoques finais na edição de "Orwell: 2 2=5", Peck engatou o Brasil numa discussão antirracista que se fez por meio de instantâneos fotográficos. A Mostra de São Paulo fez o país conhecer o mais recente trabalho do cineasta indicado ao Oscar por "Eu Não Sou Seu Negro", em 2017. Lá, ele rastreou intolerância pela via da criação literária (tal qual faz no longa sonre Orwell), mas na fita que o Brasil verá em duas semanas, ele partiu de uma outra arte: a fotografia.

Discretos, mas implacáveis no registro do racismo, os cliques feitos pelo sul-africano Ernest Levi Tsoloane Cole (1940-1990) hoje são encarados como um documento vivo das feridas geopolíticas deixadas pelo Apartheid. Sua vida foi maculada pelo desrespeito e terminou nas raias da pobreza, num processo de invisibilidade que hoje cega ao fim graças ao cinema. Cannes ajudou a consagrar seu nome com o trabalho de Peck. Agora é a vez das plateias paulistanas descobrirem sua arte.

"Eu conhecia algumas das fotos de Cole do tempo em que militei no comitê contra Apartheid, quando vivi em Berlim, mas os detentores dos direitos de sua obra me procuraram pedindo ajuda para a preservação dos retratos. Quando me debrucei sobre as fotos, fui entendendo que a história a ser contada estava nos bastidores dela, como se fosse a câmera escura de revelação, onde se escolhe o que destacar num retrato", disse Peck ao Correio da Manhã em Cannes. "Cole não queria ser cronista da pobreza, mas sim um retratista da condição humana". Cole deixou como chave para a decifração de sua obra um livro: "House of Bondage". Deixou ainda um legado de 60 mil negativos dele num cofre na Suécia, onde viveu depois de ter clicado evidências da violência racial em seu país, em tempos anteriores à libertação de Nelson Mandela. Esses cliques valeram a Cole uma relação azeda com as autoridades de sua nação, mas garantiram a ele espaço em revistas e jornais da Europa e dos EUA.

"Não quis investir num clima de thriller e ir atrás desse achado, de modo a valorizar esse arquivo secreto. O mais importante era dar voz a Ernest, entender o que se passou na cabeça dele ao sair da África do Sul e ir para Nova York. Eu sei o que é ser exilado e, portanto, posso imaginar o que ele sentia", disse Peck, que convocou o ator LaKeith Stanfield para ser a voz de Cole no filme. "Era um dispositivo pra parecer que Ernest está narrando sua própria trajetória, como se estivesse vivo entre nós".

Cannes segue até o dia 24, quando o júri presidido pela atriz Juliette Binoche vai anunciar o ganhador da Palma de Ouro. O Brasil vai à caça dela com "O Agente Secreto", do pernambucano Kleber Mendonça Filho. O astro de "Narcos" encarna Marcelo, um especialista em tecnologia que foge de um passado misterioso e volta ao Recife em busca de paz. Ele logo percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que procura. Ao lado de Wagner estão Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Hermila Guedes, Thomás Aquino, Alice Carvalho, Edilson Filho e o alemão Udo Kier. O filme é uma coprodução Brasil (CinemaScópio Produções), França (MK Productions), Holanda (Lemming) e Alemanha (One Two Films) e terá distribuição no Brasil da Vitrine Filmes.

Pátria homenageada do Marché du Film (a ala de negócios de Cannes) este ano, o Brasil terá vez ainda na seção Classics do festival com "Para Vigo Me Voy!", um documentário sobre Cacá Diegues (1940-2025) dirigido por Karen Harley e Lírio Ferreira. Disputa ainda o prêmio das curtas da Semana da Crítica com "Samba Infinito", de Leonardo Martinelli. Na Un Certain Regard, há uma coprodução da brasileira Tatiana Leite com Portugal, "O Riso e a Faca", de Pedro Pinho. Há ainda a presença do cineasta Marcelo Caetano no júri da Queer Palm de 2025.