Por: Affonso Nunes

Arrigo Barnabé: 'Naquela época falar de violência, mutação, paranoia urbana era quase ficção científica'

Arrigo Barnabé: 'Clara Crocodilo’ foi um grito contra tudo o que era previsível. Eu queria tensionar as estruturas da música popular com uma linguagem nova, que viesse do serialismo, do cinema, dos quadrinhos, do que me formou como artista' | Foto: Fotos/Divulgação

Obra inaugural da chamada Vanguarda Paulista, o álbum "Clara Crocodilo" completa mais de quatro décadas mantendo sua força transgressora intacta. Lançado em outubro de 1980 por Arrigo Barnabé e a Banda Sabor de Veneno, o disco é ponto de ruptura e reinvenção na música brasileira.

Com influências que vão da música erudita ao dodecafonismo, passando pelo jazz, pela canção popular e pela trilha sonora de filmes noir, o LP se destacou por sua estrutura rítmica agressiva, pelas harmonias dissonantes e pelas letras que retratam um mundo urbano distópico, povoado por personagens à margem da sociedade.

Para celebrar a longevidade e a atualidade dessa obra singular, Arrigo vem excursionando pelo país com o espetáculo "Clara Crocodilo", no qual revisita o repertório do disco em releitura que mantém o vigor original ao mesmo tempo em que atualiza sua forma de apresentação. Nesta quinta-feira, o espetáculo chega ao Rio em apresentação única no Espaço BNDES, com ingressos gratuitos. Acompanhado por músicos que participaram da gravação do disco em 1980, o artista recria as suítes que compôs ainda jovem, quando começava a romper os limites entre a música de concerto e a canção popular.

"'Clara Crocodilo' foi um grito contra tudo o que era previsível. Eu queria tensionar as estruturas da música popular com uma linguagem nova, que viesse do serialismo, do cinema, dos quadrinhos, do que me formou como artista", explica Arrigo. "Naquela época, falar de violência, mutação, paranoia urbana era quase ficção científica. Hoje, é o cotidiano. Por isso o disco continua atual", comenta.

Inspiração no universo das HQs e da literatura fantástica

A narrativa do álbum gira em torno de figuras grotescas e solitárias como Paulinho, Tubarão e Clara — esta última, uma mulher que sofre uma transformação monstruosa em meio ao caos da cidade grande. A linguagem, inspirada nos quadrinhos e na literatura fantástica, mistura lirismo e brutalidade. "Eu sempre fui fascinado por esses personagens extremos, que refletem o colapso da identidade na cidade. Clara é a síntese disso: uma criatura que não cabe nos moldes sociais, que vira bicho porque não tem outra saída."

O disco causou estranhamento à época de seu lançamento, mas também despertou o entusiasmo de críticos e de parte da cena artística paulistana, que via no trabalho de Arrigo uma ruptura estética semelhante à que o Tropicalismo provocara uma década antes. Não por acaso, "Clara Crocodilo" venceu o Prêmio APCA de melhor disco de 1980 e, com o tempo, tornou-se referência incontornável da música experimental brasileira.

Nos shows comemorativos, Arrigo se apresenta ao piano e à voz, liderando uma nova formação que inclui músicos veteranos e jovens instrumentistas. A proposta é recriar a densidade sonora do LP sem abrir mão da liberdade interpretativa. "Eu não queria fazer um show nostálgico. Quis voltar ao espírito de invenção que movia a gente nos anos 80. Estamos tocando as mesmas peças, mas o clima é outro: mais maduro, mais afiado, talvez até mais ácido", diz o compositor.

Ao longo dos últimos meses, o espetáculo já passou por cidades como São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Recife e Salvador, reunindo públicos diversos — de admiradores históricos a ouvintes mais jovens que se aproximam da obra pela primeira vez. Para Arrigo, o interesse renovado por "Clara Crocodilo" reflete uma demanda por arte que questione, provoque e fuja dos padrões previsíveis do mercado. "Vivemos tempos difíceis, e a arte precisa ser mais do que entretenimento. Precisa ser um choque, uma revelação, uma possibilidade de ver o mundo de outro jeito."

Com o vigor intacto e a inquietação estética que sempre o caracterizou, "Clara Crocodilo" volta aos palcos como se tivesse sido composto ontem.

SERVIÇO

ARRIGO BARNABÉ - CLARA CROCODILO

Espaço BNDES (Avenida República do Chile, 100, Centro)

8/5, às 19h | Grátis, com retirada de ingressos 1h antes do show