Por: Affonso Nunes

80 anos de Elis, viva como sempre

Elis tem um de seus discos mais emblemáticos remixado por seu filho | Foto: Divulgação

Nesta segunda-feira (17), Elis Regina faria 80 anos. Para celebrar as oito décadas dessa que segue sendo uma das maiores cantoras do Brasil, a Universal Music Brasil prepara uma série de homenagens. A primeira delas é o lançamento de “Elis”, álbum de 1973, em versão remixada pelo produtor João Marcello Bôscoli, filho da artista. O disco será disponibilizado em vinil, digital e em Dolby Atmos, tecnologia de som imersiva de alta fidelidade. 

Além desse relançamento, estão previstas compilações digitais ao longo de 2025 e 2026, reunindo gravações extraídas dos catálogos da Universal e da EMIc. O acervo contempla registros que marcaram diferentes momentos da música popular brasileira, influenciando gerações de artistas. Elis lançou e projetou nomes como Milton Nascimento, João Bosco & Aldir Blanc, Gilberto Gil, Tim Maia, Sueli Costa, Edu Lobo, Ivan Lins, Belchior, Renato Teixeira e Guilherme Arantes.

Sua vida foi interrompida prematuramente em 1982, mas não é exato dizer que estamos sem ela há mais de quatro décadas. A matriz de canto que ela estabeleceu segue influenciando cantoras brasileiras e estrangeiras; suas gravações continuam presentes em trilhas sonoras de novelas, séries e filmes; sua memória é constantemente celebrada em livros, documentários, espetáculos e homenagens diversas.

Ainda sem data definida, o relançamento do álbum “Elis”, de 1973, simboliza esse legado. O disco traz clássicos de sua carreira e uma sonoridade moderna para a época, construída com a banda formada por músicos do quilates de César Camargo Mariano (piano, teclados e arranjos), Paulinho Braga (bateria), Chico Batera (percussão) e Luizão Maia (baixo elétrico). Esse trabalho serviu de referência para uma abordagem de samba que influenciou artistas como, por exemplo, Djavan em seus primeiros anos.

"É um momento em que é desenhado um som pra ela, a partir de elementos como a abordagem, discreta mas fundamental, de César Camargo Mariano sobre os sintetizadores da época", avalia João Marcello. "Se o Brasil tivesse um pensamento, em termos musicais, como sempre tiveram os Estados Unidos, essa sonoridade ganharia um nome, seria entendida quase como um subgênero. O disco documenta esse momento de virada de página, de uma nova etapa na música e também na vida. Porque ela estava entrando num novo casamento (com César Camargo Mariano), mudando-se pra São Paulo... Enfim, uma série de nuances humanas".

João Marcello explica que a remixagem de “Elis” busca respeitar integralmente os planos originais de quem fez o disco, sem alterar sua concepção sonora, apenas aprimorando a nitidez e brilho com os recursos tecnológicos atuais. "A primeira coisa que fazemos é tirar tudo que não pertence à gravação: chiados, cliques...", detalha o produtor. "A gente vai no limite do que consegue extrair sem afetar o timbre do instrumento. Outra coisa: na época, as frequências mais graves que poderiam jogar a agulha fora do sulco do vinil eram cortadas. Nessa nova versão, tudo que era ouvido dentro do estúdio está no disco. O grave do Luizão está lá pleno, assim como o bumbo da bateria. A partir da restauração, iniciamos a remixagem, sem alterar em nada seu conceito. Ou seja, se o chimbal está do lado esquerdo, ele não vai pro lado direito. Se a relação de volume entre o baixo e a bateria é aquela, é aquela que ficará. Mas o resultado final traz uma diferença muito grande. Esses microdetalhes vão dando uma clareza, as texturas originais aparecem mais", conta.

Ainda sobre preservar a autenticidade, João Marcello segue um princípio essencial ao trabalhar com as gravações da mãe. "Não tem nenhum tipo de correção vocal de afinação na Elis. É proibido. Primeiro, porque não quero criar algo que Elis não aprovou. E, em segundo lugar, não quero passar a régua na voz para alcançar algo que não existe na natureza. Até porque a Elis usava a afinação pra interpretação. Às vezes puxa a nota um pouco pra cima ou pra baixo, de acordo com a mensagem que quer passar. Tem um jeito de atacar a nota que ela escolheu, ora indo direto, ora indo na direção dela até alcançá-la. Ela dominava aquilo. Nunca achei uma emenda nas gravações dela. É sempre um take, com a música cantada do início ao fim. É muito legal que quem está ouvindo saiba disso", enfatiza João Marcello.

 

CRÍTICA / DISCO / ELIS: Arrebatamentoa cada faixa

Lançado em 1973, "Elis" ocupa lugar de destaque na excepcional discografia de Elis Regina, reafirmando seu lugar como a maior cantora da música brasileira. Com uma interpretação arrebatadora, arranjos sofisticados e um repertório irretocável, o álbum transcende seu tempo e permanece como uma das mais belas expressões artísticas de nossa canção popular.

Desde a abertura com "Nada Será Como Antes", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, Elis já demonstra seu domínio absoluto da canção, imprimindo uma força interpretativa que jaz jorrar emoção de cada verso, captando com maestria a profundidade poética da composição. Na sequência, "Vento de Maio", dos irmãos Telo e Márcio Borges, desliza com leveza e lirismo, evidenciando sua capacidade de transitar entre delicadeza e intensidade com um jeito que só seu.

O álbum também apresenta uma das versões mais icônicas de "Águas de Março", de Tom Jobim. O dueto de Elis com um dos pais da Bossa Nova é um dos maiores tesouros da MPB com um jogo de vozes espontâneo e deliciosamente charmoso. O diálogo entre os dois é, de fato, uma das gravações mais exuberantes da MPB.

Outro momento inesquecível do álbum é "Atrás da Porta", de Chico Buarque e Francis Hime. Poucas interpretações na canção brasileira atingem o nível de emoção que Elis entrega aqui. Um canto carregado de dor e dramaticidade, visceral e arrebatador a cada nota. Com sua capacidade única de sentir e reinventar cada música que interpreta, Elis não apenas canta - ela vive a canção, tornando-a definitiva e insubstituível.

Além dos clássicos, "Elis" traz verdadeiras joias de jovens compositores da época como "Mestre Sala dos Mares", de João Bosco e Aldir Blanc, que alia crítica social e um ritmo contagiante, e "O Rancho da Goiabada", também da dupla Bosco e Blanc, que, com ironia refinada, denuncia desigualdades em meio a uma melodia irresistível. Elis transforma essas canções em narrativas vivas, onde cada inflexão de sua voz acrescenta novas camadas de significado.

A produção primorosa de César Camargo Mariano, parceiro musical e marido de Elis à época, confere ao álbum um acabamento impecável. Seus arranjos estão na medida certa para emoldurar o talento incomparável de Elis, criando uma sonoridade que passeia com fluidez pelo samba, MPB e jazz, sempre com sofisticação e equilíbrio.

"Elis" (1973) não é apenas um álbum essencial na carreira da cantora, mas um marco na história da MPB, reafirmando o fenômeno artístico que foi essa cantora. Sua voz não apenas dá vida às composições, mas as redefine, tornando cada gravação sua um evento único e insuperável. (A.N.)