Por: Lucas Brêda (Folhapress)

O tempo de Gil é mais que rei

Gilberto Gil no primeiro show da turnê Tempo Rei, na Arena Fonte Nova em Salvador | Foto: Ricardo Borges/Folhapress

Gilberto Gil condensou sua trajetória, uma das maiores da música brasileira em todos os tempos, no show que deu o pontapé inicial de sua turnê de despedida dos palcos. A primeira apresentação de "Tempo Rei", que percorre o Brasil ao longo deste ano, aconteceu no estádio Fonte Nova, em Salvador.

Mais de 40 mil pessoas lotaram o espaço na noite do último sábado (15), após os ingressos esgotarem horas antes do show começar. Foi uma recepção de gala, à altura de um dos mais ilustres filhos desta terra, que atrasou cerca de meia hora para subir ao palco para quando os espaços na plateia estivessem todos preenchidos.

Ele começou com "Palco", música que fez em 1980 como forma de se despedir da carreira, mas que acabou a reabilitando. Emendou "Banda Um" e "Tempo Rei", a reflexão sobre a ação transformadora do tempo que é tema da excursão derradeira.

Gil disse que o show era sua despedida dos grandes palcos, do que "eu venho fazendo há mais de 60 anos". "Estarmos aqui juntos é o motivo de ter me dedicado toda a carreira", ele afirmou, antes de puxar um trecho de "Aqui e Agora", canção de 1977.

"O melhor lugar do mundo é aqui e agora" diz a música, expressão das filosofias orientais que regem Gil, e recado adequado à ocasião. Mais que um resgate de um passado obsoleto, o show mostrou que a obra do tropicalista segue relevante e capaz de comover --mais ainda ali, e naquele momento.
Confirmou essa sensação o fato de que Gil, aos 82 anos, segue fisicamente capaz de interpretar seu repertório sem retirar as nuances dele. O baiano soa agora como o acúmulo de todas as suas experiências --da voz hoje mais econômica à maestria desenvolvida no violão--, e não uma sombra delas.
Ele foi acompanhado por mais de uma dezena de músicos, num espetáculo de arranjos renovados e que se dedicou a contar uma história. Depois das três performances iniciais, ele seguiu sua trajetória numa linha cronológica.

Começou com duas músicas que deram conta dos pilares de sua carreira --o baião de Luiz Gonzaga, o samba baiano de Dorival Caymmi e a bossa nova de João Gilberto. A primeira foi "Eu só Quero um Xodó", composição de Dominguinhos que Gil popularizou nos anos 1980, a segunda, "Eu Vim da Bahia", de Caymmi, mas muito conhecida na voz de João.

Esta última serviu de introdução ao próximo passo da narrativa - Gil era então o baiano que chegava no Sudeste. Entre Rio de Janeiro e São Paulo, ele protagonizou os anos de enfrentamento estético e político da tropicália, representados por "Procissão" e "Domingo no Parque", ambas da segunda metade da década de 1960.

A repressão dos anos de chumbo da ditadura militar chegou através de Chico Buarque. Em depoimento em vídeo, ele contou como compôs ao lado de Gil a música "Cálice", em suas palavras, "uma música que falava de censura e foi censurada". Ele falava sobre o AI-5 e como "os microfones [dele e de Gil] foram silenciados" quando os gritos de "sem anistia" inflamaram uma parte da plateia.

A partir dali, o barulho era tanto que era quase impossível entender o depoimento de Chico, anterior a uma performance carregada de energia de "Cálice". O frisson só aumentou com o telão trazendo imagens de vítimas da ditadura, casos do deputado Rubens Paiva - cuja história é retratada no filme "Ainda Estou Aqui", primeiro longa brasileiro a vencer um Oscar - e do jornalista Vladimir Herzog, ambos mortos pelo regime.

Caetano Veloso e, no fim, o próprio Gil, presos e expulsos do país pelos militares, também surgiram nas imagens. Ao fim de "Cálice", até quem estava sentado nas cadeiras se levantou para aplaudir a performance, em gritos de aclamação que preencheram o estádio.

"Back in Bahia" contemplou o exílio e o retorno ao Brasil. A ida surgiu na música, o rock que marcou aquela fase da obra de Gil, muito influenciado por Beatles e Rolling Stones em Londres, e a volta na letra, que retrata a saudade e o reencontro com o mar da Bahia sem rejeitar os anos na Europa.

Gil foi apresentando os músicos ao longo da noite. Mestrinho teve destaque no acordeon, tendo assinado também parte dos arranjos do show. Diversos familiares também acompanharam o tropicalista no palco -caso de João, neto, que fez o solo de guitarra em "Back in Bahia", além de Bem, José e Nara, filhos, e a nora Mariá.

A narrativa passou pela reconstrução da carreira no Brasil. "Refazenda" trouxe o reencontro com o sertão baiano de sua infância em Ituaçu, e "Refavela", o período de maior interesse pela música afro-diaspórica. Gil falou sobre como sua viagem a Lagos, na Nigéria, nos anos 1970, influenciou esse período.
Antes de fechar a trilogia "Re" com uma performance animada de "Realce", ele se dedicou ao reggae. Gil foi um dos grandes embaixadores do ritmo jamaicano no Brasil, da memorável turnê com Jimmy Cliff à tradução de sucessos de Bob Marley --caso de "Não Chores Mais", originalmente "No Woman, No Cry", com uma introdução ao pandeiro e cantada em coros pelos baianos.

Alguns dos maiores sucessos de Gil são no ritmo jamaicano, que marcaram um dos momentos mais celebrados da apresentação, ainda com "Vamos Fugir", "A Novidade" e "Extra". Esta última, uma pérola do reggae brasileiro, soou apoteótica ecoando pelos paredões de arquibancadas da Fonte Nova.

No palco, fica nítido como Gil sempre usou o filtro tropicalista que forjou para absorver diversas expressões musicais, de dentro e de fora de seu país. Nada que ele faz é mera reprodução, mas uma interpretação particular, levando em conta a cultura que lhe formou, do que suas antenas captaram ao longo dos anos.
Ele cantou "Punk da Periferia", sua visão do estilo que despontava no exterior e nas periferias de São Paulo na virada dos anos 1980. Mostrou também "Realce", em que deglute a disco music, numa sequência de canções que lançou naquele período, incluindo também "A Gente Precisa ver o Luar".

O violão de Gil, uma instituição da música nacional, deu as caras na fatia mais emotiva do show. Ele cantou uma versão sublime de "Se eu Quiser Falar com Deus" acompanhado de cordas e um solo de sopro, além de "Drão", "Estrela" e "Esotérico", levando às lágrimas quem ainda não tinha chorado.
Antes de "Drão", Gil dedicou o show à sua filha, Preta Gil, que trata um câncer. Ela assistiu ao pai na Fonte Nova, após ter recebido alta médica horas antes da apresentação.

A reta final foi de pura celebração, com a plateia toda de pé e dançando. Teve "Expresso 2222" e "Andar com Fé", num momento em que a energia emanada pelo público era palpável.

Em "Emoriô", Russo Passapusso, do BaianaSystem, engrossou o coro, seguido por encontro de ministros da Cultura de governos do presidente Lula, do PT. Gil, ex-ministro, recebeu Margareth Menezes, atual ocupante do posto, em "Toda Menina Baiana", cantada para um estádio em êxtase - afinal de contas, além de tudo, era a Bahia.

O encerramento veio depois de quase 2h30 de show. Contou com "Esperando na Janela", com os casais na plateia devidamente dançando forró, e "Aquele Abraço", a despedida na despedida, em que Gil sambou, tirou onda, puxou um coro de "Na Baixa do Sapateiro", de Caymmi, e saiu de cena agradecendo como um bandleader de outras eras.

Em seu show de despedida, Gil é mais que um contador de histórias - ele é a própria história encarnada, capaz de juntar no palco as várias pontas de uma obra que brilha viva para além dos livros de história. Ajudou a estreia ser em Salvador, cidade pulsante que se reconhece em seus versos. Como na trajetória do tropicalista, a Bahia deu à turnê régua e compasso.

Datas da turnê 'Tempo Rei'

  • 29 e 30/3 e 5 e 6/4 - Rio de Janeiro (Farmasi Arena)
  • 11, 12, 25 e 26/4 - São Paulo (Allianz Parque)
  • 315 e 1/6 - Rio de Janeiro (Marina da Glória)
  • 7/6 - Brasília (Arena BRB)
  • 14/6 - Belo Horizonte (Arena MRV)
  • 5/7 - Curitiba (Ligga Arena)
  • 9/8 - Belém (Estádio Mangueirão)
  • 6/7 - Porto Alegre (Estádio Beira Rio)
  • 15/11 - Fortaleza (Centro de Formação Olímpica)
  • 22/11 - Recife (Classic Hall)

O tempo de desacelerar

| Foto: Divulgação

Em 1980, Gilberto Gil pensava em abandonar a música. Como despedida, escreveu "Palco", hoje um de seus sucessos. "Era fastio. Tive um impulso de paralisar a carreira e buscar outra profissão. Alguns artistas, como eu, estão sujeitos a momentos de náusea em relação ao trabalho", ele diz. "Mas agora não. É velhice mesmo."

Em seu apartamento no Corredor da Vitória, em Salvador, o tropicalista de 82 anos se refere à última turnê, "Tempo Rei". Em meio a ensaios, fisioterapia e entrevistas, diz que não se trata de uma despedida definitiva dos palcos, e nem da música, mas da estrada e dos grandes shows. Gil explica que deseja voltar à dimensão originária do seu trabalho - se apresentar em espaços de pequeno e médio porte, para públicos modestos, enquanto sua saúde permitir.

No começo desses quase 60 anos de carreira, nem mesmo a guitarra elétrica era algo comum na música brasileira. Em 1967, no Festival da MPB, na Record, ele e os Mutantes botaram o instrumento para chiar na histórica performance de "Domingo no Parque". A plateia era pequena, mas Gil teve medo de encará-la. "Ali era a dificuldade do enfrentamento, aquela situação nova", diz, lembrando que teve de ser resgatado no hotel para subir ao palco, de tão nervoso que estava.

A inserção da guitarra na música brasileira foi a primeira batalha estética que Gil e seus amigos, entre eles Caetano Veloso e Gal Costa, travaram. Para ele, a influência do tropicalismo, que veio de um ímpeto de modernizar a tradição musical brasileira, à luz da bossa nova, continua nítida. "Quase toda a música atual é inserida nesse campo das novas tecnologias. São elementos transformadores da própria condição artística", diz.

No caso da tropicália, os conceitos estéticos estavam em diálogo com a transformação na comunicação, que passou a atingir as massas - em especial com a TV, mas também a expansão do rádio e o maior acesso aos discos. "A tropicália teve um papel na introdução desse novo contexto, no conceito de cultura pop", afirma.

Aquelas experiências desembocaram, nos anos 1970, numa produção fonográfica hoje tida como uma usina de clássicos. Na visão de Gil, isso não tem a ver apenas com o talento daquela geração. "O aproveitamento do nosso talento se deu em função da expansão dos nossos interesses como artistas, representantes de uma voz social. É nesse sentido que o tropicalismo foi original, deflagrador de novas configurações. O talento sozinho não podia fazer nada."

O enfrentamento dos tropicalistas foi estético, mas também político. Gil se lembra que teve reações distintas à prisão e ao exílio, impostos pela ditadura militar, em relação a Caetano. Foi na cadeia que ele compôs "Cérebro Eletrônico", expressão do seu interesse pelas novidades tecnológicas. "Sou canceriano, mais conformado com o sofrimento", diz. "Enquanto ele se recolhia, eu ganhava uma nova expansividade."

Gil também compôs e gravou "Aquele Abraço", que traz no nome uma expressão que ele ouvia dos militares na cadeia, às vésperas do exílio em Londres. Em 1970, já na Europa, escreveu um texto no Pasquim recusando o prêmio Golfinho de Ouro, que havia ganhado pela música. Para ele, hoje e naquela época, "Aquele Abraço" recebeu "interpretações parciais".

O artigo no Pasquim inaugurou de maneira mais firme a afirmação da identidade racial do baiano. "A tomada de consciência da minha condição de negro foi aflorando ao longo do tempo e culminou com um momento de agudeza quando fui preso e expulso do país".

A negritude e a ancestralidade africana ficaram mais presentes na obra de Gil a partir dos anos 1970, e a ideia de originalidade do Brasil a partir da mestiçagem está em praticamente toda a sua produção. "A radicalização da questão racial é a mestiçagem. É inescapável", filosofa.

Vanguarda institucional

Ao longo dos anos, Gil trabalhou para institucionalizar sua vanguarda. Foi vereador e secretário da Cultura em Salvador, além de ministro da Cultura de Lula. Usa hoje o fardão da Academia Brasileira de Letras que parodiou em seu disco de 1968.

Conhecido pela postura serena, Gil observa com certa naturalidade um planeta que enfrenta crises climáticas e vê a ascensão de líderes autoritários da extrema-direita, caso de Donald Trump. Acredita que "as transformações permanecem jogando o ser humano para vários lados, e o obrigando a se defrontar e se posicionar em relação a elas o tempo todo."

E ainda que tenha trabalhado para levar a música brasileira em direção ao futuro, através também da tecnologia, ele hoje torce o nariz para magnatas das big techs como Elon Musk e conceitos como o aceleracionismo.

Gil quer para o mundo o mesmo que para sua carreira -desacelerar. "A ideia do crescimento econômico, que envolve o expansionismo internacional através do colonialismo, com as grandes dificuldades ambientais e sociais, de distribuição de riqueza, vêm chamando a atenção para o fato de que está na hora de desacelerar. É hora de pensar em decrescer, ter menos crescimento econômico -ou, pelo menos, um crescimento mais monitorado a partir de uma visão de políticas coletivas e públicas. Sou dessa turma."