Onome artístico diz que é da Portela, mas ele é do Tuiuti, do Cacique de Ramos, do Barbas, do Simpatia é Quase Amor… Osvaldo Alves Pereira, o Noca, chega aos 91 anos de uma vida que, literalmente, deu muito samba. Esse mineiro chegou pequeno ao Rio e passou por inúmeros percalços antes de vencer na vida com sua música, tornar-se o primeiro sambista a ser secretário estadual de Cultura e até receber a Comenda da Ordem do Rio Branco, a maior condecoração concedida pelo Itamaraty.
Depois de viver em cabeças de porco ou barracos de zinco - perdeu tudo nas enchentes de 1966 que devastaram sua casa no Tuiuti -, trabalhou duro como feirante e soube conciliar as responsabilidades como marido e pai com a típica boemia no meio do samba.
Filho de um militante comunista, Noca herdou apenas duas coisas do pai: um violão e um quadro com a foice e o martelo. "Meu pai trabalhava na Lloyd, passava muito tempo longe de casa, mas tocava e compunha alguns sambas. Mas nunca quis que eu seguisse por esse caminho. Ele sabia que não tinha jeito e me tornei seu herdeiro na música e militância", disse Noca a este repórter em depoimento dado em 2018.
E se viver exclusivamente de música era praticamente impossível para artistas de origem humilde, Noca deu seu jeito. O primeiro contato com os batuques veio quando viveu no Catete, bairro que concentrou vários blocos e escolas de samba, entre as quais a Irmãos do Catete, onde sua sensibilidade começou a ser notada. Anos mais tarde, vivendo numa cabeça de porco na Praia de Botafogo, conheceu os compositores Mauro Duarte, Walter Alfaiate, Delcio Carvalho e César Farias, pai de Paulinho da Viola. "Então ali eu comecei a me descobrir como compositor. Formamos o bloco Foliões de Botafogo. Muita gente boa", recorda o poeta.
De Botafogo, viveu no Morro Azul do Flamengo, antes de se mudar para o Morro do Tuiuti, em São Cristóvão. Atraído pelo custo mais baixo da moradia e por ter sabido que a turma de lá também era chegada ao samba. Nesta favela passou muito sufoco por morar na parte alta, onde a água não chegava, mas conheceu a mulher que seria seu esteio por 60 anos, a Dona Conceição, que desfilava no bloco local.
Noca não chegou a fundar a Paraíso do Tuiuti, criada um ano antes de sua mudança para lá, mas logo ingressou na escola e em sua ala de compositores, emplacando vários sambas-enredo para a escola.
A ida para a Portela se deu em 1966 pelas mãos de Paulinho da Viola, que também era ligado ao PCB. "Na Portela era diferente. Precisava de um estágio de dois anos antes de poder apresentar sambas nas disputas de samba-enredo. Então, só pude participar dos concursos em 1968", lembra. Disputou 13 finais de samba-enredo pela azul e branco, sendo campeão em sete ocasiões, como em 1995, quando a escola foi vice-campeã do Carnaval com "Gosto que me enrosco".
A primeira música gravada é de 1954, mas sua história não traz boas lembranças. "Tinha uma marchinha chamada 'Marlene meu bem', uma homenagem à cantora de quem era fã. Cantei essa música para um cara e ele disse 'Vou gravar essa música para você'. Respondi que, então, ele seria o meu parceiro. O cara só fazia compacto simples. Gravou e assinou meu nome junto com o dele, mas nunca vi nenhum tostão", reclama.
Mas com outras canções não foi assim. A partir dos anos 1960, passou a ser gravado por Maria Bethânia, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Dudu Nobre. Zeca Pagodinho e Seu Jorge, entre outros.
Seu maior sucesso, "É Preciso Muito Amor", tem várias regravações. O compositor conta que ela nasceu quando ele e um amigo estavam num bar em Guadalupe após o batizado do filho de um amigo. "Tinha um sujeito lá que já estava calibrado de bebida. De repente, me chega uma preta robusta e pergunta se o peixe que ele foi comprar ia chegar frito ou ensopado. Ela deu uma dura nele e exigiu que ele fosse pra casa. O malandro foi saindo de mansinho, mas depois que a preta passou pela porta, ele bateu no peito e falou pra todo bar ouvir 'É preciso muito amor para aguentar essa mala'. Começamos a batucar e mexer na frase até virar 'É preciso muito amor para suportar essa mulher' e o resto foi chegando. O bom samba tem que ser verdadeiro, tem que ter uma história por trás. Ouvi isso do Geraldo Pereira lá na Lapa", explica.
Outro grande sucesso de Noca foi "Virada", parceria com o filho Gilmar - o Noquinha -, e gravada por Beth Carvalho que virou um dos hinos da luta pela democratização durante a campanha das Diretas Já. "O que adianta eu trabalhar demais / se o que eu ganho é pouco / se cada dia eu vou mais pra trás, / nessa vida levando soco, / e quem tem muito tá querendo mais, / e quem não tem tá no sufoco, / vamos lá rapaziada, tá na hora da virada / vamos dar o troco", dizem os primeiros versos. "Fiz esse samba quando os sindicatos estavam ganhando força, falava ali do drama do trabalhador. A Beth ouviu, disse que queria gravar e que ela faria sucesso", lembra o compositor.
Com o bom dinheiro que ganhou com "Virada", deu o troco em sua vida e comprou a casa no Engenho de Dentro onde vive até hoje com filhos, netos e bisnetos - Dona Conceição partiu em 2013. "Eu venci. Como imaginar que um menino pobre que chegou de Minas, trabalhou na feira, viveu em favelas, passou por tanto sufoco, viria a ser secretário de Cultura, que receberia uma comenda do presidente da República? Porém minhas maiores alegrias vieram do samba. Eu não vivi do samba, vivi para o samba. Certa vez meu neto me levou a uma roda no Rio Comprido. Tinha uma garotada que queria me conhecer. Era pra ficar uns vinte minutos; fiquei duas horas e meia. Tudo meu que foi cantado eles acompanhavam. É isso que realiza a gente, ser reconhecido pelo povo. Sou um artista popular, um cronista da minha gente", orgulha-se.
Com uma lucidez e vitalidade que impressionam, Noca da Portela, do Tuiuti e de tantos sambas talvez seja um caso raro de compositor que assina parcerias com o neto. Se bobear, fará samba com os bisnetos.