Por: Affonso Nunes

Delícias e sabores da canção brasileira

Lucas Bueno e Patrick Angello nos bastidores da gravação de 'Jambu' | Foto: Acervo pessoal

Lucas Bueno retorna à cena musical com "Jambu", álbum que traduz o Brasil em melodia, texturas e sensações com gosto de fruta madura. Em parceria com o violonista Patrick Angello, o cantor e compositor percorre 11 faixas que exaltam o país em sua essência, das tradições amazônicas às paixões urbanas, das lendas e crenças populares aos sabores que ficam na boca e na memória. Se em "Lágrimas" — seu trabalho anterior, feito a quatro mãos com Paulo César Feital — o Brasil era cantado em suas secreções e dores, "Jambu" mostra um país de exuberância sensorial, entre comidas, mitos e corpos.

A faixa-título sintetiza essa proposta ao fazer dessa erva amazônica uma metáfora do desejo como algo que se entranha na saliva, capaz de entorpecer e também de curar. "Sabes de onde vim?/Belém do Pará/Pra te entorpecer/Para colocar/Lábios de jambu/Em pele de jambo", canta Lucas em versos que diluem as fronteiras entre o que se come, o que se sente e o que se canta. A canção funde corpo, terra e sentimento.

O disco abre com "O Menino e o Cavaleiro da Lua", parceria com o historiador Luiz Antonio Simas, um poeta de olhar místico. Entre a toada e o samba, a canção traz a figura de São Jorge sob o olhar infantil, a primeira de muitas referências que constroem um Brasil profundo e mágico, um fio condutor para o trabalho.

Essa mitologia brasileira está também em "Encontros em Mangueira", um samba que imagina diálogos impossíveis entre bambas da estirpe de Cartola, Pelado, Carlos Cachaça, Zagaia, Donas Zica e Dona Neuma com mestres da música de concerto como Beethoven, Bach e Chopin. A partir desse encontro, Lucas sonha a intersecção de mundos, um dom de poeta.

Se há lenda e história, há também a pulsação, a ardência, o desejo. "Jambu" é a canção mais sensual do disco, e seu espírito segue em "Pé de Abiu" - o erotismo se enlaça ao trágico. No jogo de sedução da letra, a erva seduz e envenena, como uma nova versão do mito da maçã e do pecado original. Esse jogo literário domina "Casa Amarela", em parceria com Sombrinha. É um samba-blues? Sim, mas é samba de raiz.

Com Ana de Hollanda, Lucas compõs Mariedite". Eis aqui uma mulher madura, do alto de sua solidão, à feição da poética de Aldir Blanc, com suas dores cotidianas. A influência blanchiana não é mera coincidência: é mais que nítida em "Entrevista", com referências explícitas ao bardo da Muda: "Vi um psiquiatra/Um Jesus numa Cruz de Malta/Gritei: é o Agnus Sei".

A tampa do disco (royalties para o nosso querido colaborador Aquiles Reis) com "Rivotril", um samba-choro com a grife de Paulo César Feital. A letra deste fazedor de sucessos entrega aquele fastio que nos toma de assalto diante da realidade: "Que se exploda essa nação", canta Bueno, num brado que encontra eco em tanta gente.

"Jambu", de Lucas Bueno, é uma quintal amplo, do tamanho do Brasil. O álbum oscila entre o delírio e a lucidez, entre o amor e a crítica, mas não abre mão da beleza que é ser brasileiro. Podemos provar  desse trabalho, sem contra-indicações.