Em meio a onda de homenagens que celebram a obra de Itamar Assumpção, com regravações, peças de teatro e exposições, o músico Guto Bellucco faz uma especial: um álbum com letras inéditas do ícone da Vanguarda Paulista. Com participação da cantora Jadsa e produção musical de Lucas Vasconcellos, o disco transforma poemas de amor desconhecidos de Itamar em canções mergulhadas em sonoridades como rock, samba e até um xote.
Um acaso fez Guto encontrar numa estante o livro que Anelis Assumpção, filha de Itamar, editou em 2014 com rascunhos do pai, "Cadernos Inéditos" (Editora Terceiro Nome). Com tiragem limitada à época, a obra é uma raridade em livrarias. Quando folheou os poemas, pequenas crônicas e motes deixados por Itamar, Guto pegou o violão e começou a compor melodias:
"Intuitivamente as notas pareciam pipocar daquelas letras. Os temas também pareciam me chamar, tinha um desespero amoroso, uma melancolia que a gente não ouve tanto hoje em dia. Um sujeito falando sobre o que sente de maneira pungente, sincera. Eram blues latentes. Me parecia estranho que aquelas letras ainda não tivessem música, mas foi uma grande sorte terem caído em minhas mãos. Ganhei na loteria mas tinha que fazer jus ao prêmio, para gravar um disco teria que juntar músicos à altura do som do Itamar".
Com produção musical de Lucas Vasconcellos (produtor de Maria Luiza Jobim e ex-integrante do duo Letuce, com Letícia Novaes) e Marcos Kuzka (músico e autor de trilhas de filmes), o disco tem na bateria Gabriel Barbosa, o 'Barbeize' (Technobrass, Julia Vargas, Posada); baixo e guitarra do próprio Lucas; violão, guitarra e voz de Guto Bellucco e as participações especiais da cantora, compositora e guitarrista baiana Jadsa Castro e da cantora e performer argentina-brasileira Lucía Santalices.
"Diálogos e vozes femininas foram marcas do estilo de Itamar, desde o primeiro disco ("Beleléu, Leléu, Eu", 1980); depois, com As Orquídeas do Brasil, a banda feminina que o acompanhou. Esse foi um dos sabores de sua estética musical que procurei nas duas cantoras e nos diálogos que a presença delas permitiu", comenta Guto.
"Mar Adentro" ainda tem como referências as obras de Jards Macalé e Sergio Sampaio, outros músicos rotulados de "malditos", como Itamar, por desafiarem cânones musicais e poéticos da MPB dos anos 1970. Uma das influências está na mistura de sonoridades e escalas de rock e blues com ritmos brasileiros, como faziam os músicos da Vanguarda Paulista.
Inspirada no primeiro disco de Macalé (Jards Macalé, 1972), que tinha como originalidade ter apenas três instrumentos gravados simultaneamente - algo incomum hoje em dia - a gravação de "Mar Adentro" também se baseou em um trio de violão, baixo e bateria, registrados em sessão única de seis horas em estúdio e gravação simultânea dos instrumentos.
"A vantagem desse tipo de solução quase artesanal é que os arranjos são feitos coletivamente e improvisos são incorporados à gravação, como na longa digressão instrumental na canção 'Rap Desculpe'. A gente ainda gravou outros instrumentos, como um clarinete e teclados, além da guitarra, o que completou o clima específico de cada canção, energizando essa nova 'morbeza romântica", compara Guto, usando a expressão criada por Jards Macalé para definir a primeira fase da sua obra.
Além das seis canções feitas a partir de poemas inéditos de Itamar, o disco tem uma sétima criada com um mote que aparece nos rascunhos do compositor: a expressão "nunca mais": "A melodia eclodiu a partir dessas duas palavras e de alguns versos do Itamar que giravam em torno disso, mas não faziam tanto sentido enquanto canção. Numa parceria com Mariana Filgueiras, fizemos versos a partir desse mote, repetindo o "nunca mais" e criando uma situação amorosa que complementa as que se apresentam nas outras canções criadas. A nova canção ganhou seu lugar entre as que tinham letras do Itamar", conta o músico.
Parceiro póstumo de Itamar, Guto teve todo o processo acompanhado e incentivado por Anelis Assumpção. Quando lançou o livro, há 10 anos, a ideia da cantora era estimular que outros artistas fizessem o que Guto fez agora, criando sobre o legado do pai. Na abertura de "Cadernos Inéditos", poeta e ex-parceira de Itamar, Alice Ruiz, celebra a potência da obra: "Itamar, além de músico inovador, com linhas melódicas e ritmos feitos para prazerosamente quebrar nosso jeito de olhar e ouvir, é poeta. Não deixou um livro de poesia escrita. Não importa. Deixou esses cadernos".