De braços dados com a tela grande não apenas na transmissão de filmes, mas também com a cobertura jornalística do que sai dos sets, a televisão presenteou a gente com alguns oráculos da cultura cinéfila: Rubens Ewald Filho, Wilson Cunha, Renata Boldrini, Celso Sabadin, Anne B. Santiago. Nessa patota aí, responsável por alfabetizar o país nas cartilhas fílmicas, tem um camarada que comemora 35 anos de serviços prestados ao audiovisual em 2025 e faz sua festa em forma de livro: Moisés Liporage. Nesta quarta-feira, às 18h30, no Estação NET Rio, ele lança "O Além é Logo Ali" (Ed. Patuá), uma coletânea de narrativas horroíficas, mas cheias de humanismo - como é típico dele.
Especialista de Conteúdo no Globoplay, Liporage passou 16 de seus 59 anos na Rede Telecine, ensinando o Brasil a amar a arte de contar histórias com imagens em movimento a partir de um trabalho como apresentador e crítico. Comentava não apenas os lançamentos do canal, mas também os clássicos que fizeram o mundo transcender a partir das telas, de Murnau a Spike Lee, de Agnès Varda a "O Som ao Redor" (2012). À sua fala melíflua e segura (qual um samurai de katana na mão, como os espadachins de Akira Kurosawa que já citou no passado), ele acrescenta uma escrita leve, onde sujeitos e predicados dançam nos embalos gramaticais da precisão que adquiriu escrevendo na extinta revista "Cinemin", em 1990. Em paralelo a esse periódico e à TV, ficou de prosa com a poética na literatura, e publicou "Coisas de Homem" (1996), "O Gato Subiu no Telhado" (2008), "Carniça" (2010), "Tem um Morcego no Meu Pombal" (2012) e "O Olho da Rua" (2016).
"O Além é Logo Ali" tem sapo seco, farofa amarela, garganta de gato, carne de urubu, amor e outros objetos pontiagudos, que ele afia no papo a seguir.
Depois do seu morcego pimpão, o que seu novo mergulho nas veredas das "assombrações" revela sobre o universo do terror, do terrir, do medo, da finitude e de você mesmo?
Moisés Liporage - Adorei "morcego pimpão", referência a "Tem um Morcego no Meu Pombal", um livro meu para o público infantil. Esse agora, "O Além é Logo Ali", é para o público adulto. Na verdade, é uma peça de teatro inédita, estruturada em cenas estanques, cada uma com uma historinha diferente. Como uma antologia. Minha inspiração principal foi a série "Além da Imaginação", criada pelo Rod Serling. São histórias que transitam pelo terror, o horror e o humor macabro.
O que a gente encontra nelas?
Traz pessoas comuns em situações extraordinárias e monstros clássicos tirados de seus contextos góticos e colocados em situações inusitadas. Por exemplo, "Fla x Flu" mostra um tricolor que sobreviveu à queda de um helicóptero no meio de uma região desértica e se vê lutando para não virar a refeição de um urubu. "O Teste" imagina se cada alma que fosse nascer precisasse se submeter a uma audição, como um ator ou atriz tentando conquistar a chance de encarnar um personagem. "A Saideira" é sobre um sujeito muito ansioso que, para o bem ou para o mal, agarra a oportunidade de saber quando vai morrer. Em "O Regresso", um rapaz escapa por milagre de um terrível acidente de carro, mas tromba em um destino ainda mais sinistro. Já "Ele é o Bicho" apresenta o caso de uma jovem que descobre da maneira mais inusitada por que seu namorado simplesmente some nas noites de Lua Cheia. Tem também "No Escuro do Meu Quarto", cena que se concentra na angústia de uma mulher que mora sozinha e acorda à noite sem coragem de abrir os olhos, com medo do que pode ver ao lado de sua cama. E "Que Horror!" acontece durante a gravação de um episódio do videocast apresentado pelo Dr. Henry Jekyll, de "O Médico e o Monstro", que recebe como convidados o Conde Drácula e a criatura de Frankenstein.
Você é uma voz de referência histórica na TV na cobertura da evolução cinematográfica. O que tem de cinema nesse livro?
Tem cinema na construção do imaginário que deu origem às cenas. De alguma forma, várias versões de "Drácula", "Frankenstein", "O Médico e o Monstro" e "O Lobisomem" estão ali presentes, liquidificadas, amalgamadas. E na cena "O Teste", faço referência direta ao filme "O Homem que Odiava as Mulheres" (1968), que traz uma interpretação incrível do Tony Curtis na pele do psicopata Albert DeSalvo, que ficou conhecido como o Estrangulador de Boston.
De que maneira a sua vivência na reportagem cinematográfica molda a sua forma de formatar a literatura?
Para mim, as imagens surgem antes das palavras. Personagens, situações, ações. Depois que esses elementos vão surgindo, eu vou tentando organizá-los em palavras. Mas tudo aparece na minha cabeça como fragmentos de filmes.
Qual foi o filme que te fez amar os filmes e qual foi o livro que te faz amar os livros?
Quanto aos filmes, na infância, foi "O Calhambeque Mágico" (1968). Já no início da adolescência, foi "Muito Além do Jardim" (1979), com Peter Sellers em uma das mais fantásticas interpretações que vi no cinema. E na seara dos livros, "Para Gostar de Ler", uma coletânea de crônicas escritas por Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade. Este eu li no início da adolescência e fez com que me apaixonasse pela literatura como leitor e ainda me fez ter a gana de escrever. E levo comigo, como razões para viver, livros do Rubem Fonseca, Stephen King, Kurt Vonnegut, Machado de Assis, Kafka, Patricia Highsmith... e por aí vai.