Quando meus olhos entraram pela primeira vez no caudaloso rio "Sinfonia Barroca: o Brasil que o povo inventou", não eram mais os mesmos na última página. Uma entrevista, pedi. "Só se for em Ouro Preto", respondeu-me o autor. Pela Ateliê de Humanidades, o mineiro Rubem Barboza Filho publicou linhas em que o terceiro excluído é a história brasileira, compreendendo esse terceiro como o terceiro elemento que retorna incluído em "Sinfonia Barroca".
Rubem tece sintaxes simples que aprofundam a superfície, levando quem o lê a negar o dualismo histórico brasileiro ao som desta sinfonia, que, ao admitir a presença do terceiro elemento, compreende a importância do princípio da contradição na formação brasileira, princípio negado pela filosofia identitária de Aristóteles, por isso o terceiro excluído aristotélico ou o princípio da não contradição. Em minha biblioteca, ao lado de Gilberto Freyre, está Rubem Barboza Filho, que, às 10h, marcou a entrevista na rua do Aleijadinho, em na histórica cidade mineira.
Rubem estava à espera, por que em Ouro Preto?
Rubem Barboza Filho - Porque a cidade representa bem o que quero dizer em Sinfonia Barroca. Andemos por ela.
Por qual razão Ouro Preto representa aquilo que você quer dizer com "Sinfonia Barroca"?
Ouro Preto possui algumas características que a singularizam diante das outras cidades dos nossos três primeiros séculos. Ela é uma figuração magnífica de um processo de autoinvenção de um povo, com suas socialidades diversas, ao longo destes séculos.
A que cidades você se refere e que características seriam essas?
Recife, Olinda, Salvador, Rio de Janeiro e a então pequena São Paulo preservaram a condição de centros políticos e/ou econômicos, recriando-se como centros urbanos em consonância com a dinâmica dos vários ciclos de "modernização". Após a autonomia política, Ouro Preto crispou-se em monumento. Evidentemente nenhuma cidade permanece imóvel, mas Ouro Preto, ao abandonar-se como capital da província, conseguiu manter a sua estrutura urbana, arquitetônica e visual do século XVIII, vazada numa concepção nitidamente barroca de uma forma de vida em comum. Essa igreja, belíssima obra de Aleijadinho (Igreja de São Francisco de Assis) é Ouro Preto, cidade que nos permite ainda hoje decifrar a experiência de construção por homens e mulheres comuns e contra a política extrativista e particularista da Coroa, de um modo de vida original, autonomista, social e economicamente produtiva, abrigando uma socialidade democrática e barroca. Ela é um resumo de um aprendizado realizado nos séculos anteriores.
Pode desenvolver esse raciocínio?
Ouro Preto não obedeceu à tradição urbanística portuguesa, não nasceu de famílias patriarcais, não se formou como expressão do poder da Coroa e nem das ordens religiosas, mas foi imaginada e construída por homens e mulheres comuns, uma multidão em busca de ouro e diamantes que progressivamente se organiza em cidade, em pólis, valendo-se do Barroco como um método de criação de formas de vida em comum.
Assim como Ouro Preto, seu livro se refere à sociabilidade barroca...
Sim, a sociabilidade barroca nega a oposição entre os diferentes, abrindo as várias tradições existentes para a constituição de um vasto processo de mestiçagem como um fato biocultural. Um processo que pode ser encontrado na invenção do nosso português brasileiro ou num catolicismo plástico e popular, que acolhia a contribuição de indígenas e africanos, sem a presença de uma "conversão" excludente e paulina. Como acontecia em Ouro Preto.
Então você mistura os contrários, assim como a estética da igreja...
Digo que o barroco brasileiro não persegue a história como a sucessão de sínteses racionais entre tese e antítese, mas se desdobra como forma de vida rizomática.
Rizoma? Por quê?
Bom, não sou discípulo de Deleuze, como hoje é muito comum; não faço, no livro, nenhuma análise exaustiva do seu pensamento, valendo-me sobretudo de A Dobra, onde ele trata do barroco. Uso o conceito deleuziano de rizoma, no contexto histórico dos nossos três primeiros séculos, para fugir dos limites de uma "história" contada do ponto de vista estruturalista e finalista dos grandes modelos europeus, que supõe uma unicidade da aventura humana, derivada de uma única raiz. Mas acentuo, com Édouard Glissant, que este conceito só me serve se estas raízes diversas estiverem abertas ao outro, ao diferente, como propõe o Barroco, que é "relação", que confere dinâmica de mestiçagem a encontros entre formas de vida.