Por: Olga de Mello - Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA / LIVRO / TRISTE TIGRE: A sujeira embaixo do tapete

A francesa Neige Sinno em painel da Flip 2025, quando veio lançar 'Triste Tigre' | Foto: Divulgação Flip

Quem nasceu no século 20 cresceu entendendo que o estupro era, em parte, culpa da vítima - a roupa, a sensualidade, a vida. Imperdoável, no entanto, era o estupro de crianças. Com a mudança do conceito - vítima é vítima, não importa a idade - e a revelação de casos escabrosos, surgiram os livros-depoimentos aterrorizantes sobre a verdade incômoda, escondida por baixo do tapete. Um dos mais recentes a ser lançado no Brasil é "Triste Tigre" (Amarcord/Record, R$ 69,90), que apresenta o estupro de vulnerável na literatura e trata do trauma de uma vítima, a escritora Neige Sinno, violentada pelo padrasto dos sete aos catorzes anos.

Há mais do que revolta e mágoa no texto de Neige, que somente contou à mãe o que aconteceu quando tinha 19 anos, depois de deixar a casa da família. Ambas o denunciaram à justiça e ele foi condenado a nove anos de prisão - uma pena reduzida porque o agressor reconhece sua culpa, admitindo ter estuprado continuamente a enteada. No entanto, observa a escritora, levar a público o incesto provoca constrangimento devido à divulgação de um crime que a sociedade tenta esconder. A punição recai também sobre a ex-mulher e os filhos. O descrédito inicial sobre o crime se transforma na censura à ex-mulher e ao silêncio da menina estuprada por tanto tempo. A sociedade não condena apenas o agressor, mas quem sofre com o incesto e o abuso sexual, percebe a autora, hoje com 48 anos.

Macaque in the trees
Neige Sinno esteva na Flip 2025 para lançar 'Triste Tigre' | Foto: Divulgação

Não há detalhes dos atos impostos à menina, apenas algumas menções, contribuindo para o incômodo causado por toda a leitura. Neige Sinno procura analisar aspectos psicológicos do agressor, como sua tranquilidade e certeza da impunidade, ao submeter a criança à sua vontade, enquanto os outros filhos e a mulher dormem em quartos próximos. A menina se angustiava, temendo que ele venha a abusar de sua irmã, também filha do primeiro casamento da mãe.

Rever esse passado doloroso é seu direito, ela informa ao leitor, ainda que volte a experimentar "a sensação de (...) uma coisa grave e terrível", como quando se iniciou o abuso. O padrasto, recorda, falava "como um domador fala com um cavalo (...) que precisa ser controlado para não escapar". É semelhante ao que descreve Virginia Woolf, entre outras escritoras também vítimas de estupros. Processar judicialmente o agressor não é fácil, exige precisão nas datas e descrições dos abusos, requisitos burocráticos que podem desanimar o acusador. Essas dificuldades seriam a maneira de varrer para baixo do tapete a inconveniente realidade da frequente quebra de um tabu, para a qual não existe explicação, apenas justificativas que procuram envolver as vítimas como motivadoras inconscientes de um crime. A abordagem contundente - e extremamente pessoal, sem esclarecimentos científicos - de Neige Sinno recebeu diversos prêmios literários, entre eles o Strega Europeu, o Goncourt des Lycéens e o Femina.

 NA ESTANTE

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Coluna livros 14/11/25 | Foto: Divulgação

Os encontros secretos de oito mulheres para discutir literatura em língua inglesa na casa de uma professora, no Irã dos talibãs, fez de “Lendo Lolita em Teerã – Memórias de uma resistência literária” (Record, R$ 89,90) um best-seller traduzido em 32 idiomas – que ganha nova edição brasileira.
Em 1995, Azar Nafisi convidou algumas de suas ex-alunas na Universidade de Teerã a retomarem as aulas sobre romances clássicos que suscitam observações sobre as semelhanças das vidas ficcionais com o cotidiano do grupo sob uma política altamente repressora. O controverso “Lolita”, diz a autora, não escandalizaria a sociedade iraniana pelo relacionamento entre um adulto e a enteada de 13 anos, que “se vivesse na República Islâmica do Irã, há muito estaria madura para casar com homens mais velhos” do
que o narrador Humbert Humbert.

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Coluna livros 14/11/25 | Foto: Divulgação

“Com amor, Mamãe” (Intrínseca, R$ 59,90), da norte-americana Iliana Xander, é um daqueles thrillers cujas surpresas são mais do que aguardadas, porém prendem o leitor até o final – ainda que para verificar
o quanto estava certo em suas apostas. Quase um romance teen, tem como protagonista a jovem MacKenzie, filha de uma escritora de livros de mistério e de um alcoólatra que vive às custas da mulher. A morte suspeita da mãe, que teria sido vítima de um obscuro acidente doméstico, leva a garota a procurar saber mais sobre o passado dos pais, que pouca atenção deram à sua criação. Ao lado do melhor amigo, ela vai procurar quem conheceu o casal há mais de vinte anos, guiada por trechos de cartas escritas por sua mãe.

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Coluna livros 14/11/25 | Foto: Divulgação

“Dona Leopoldina e os viajantes no Brasil” (Capivara, R$ 140), do historiador austríaco Robert Wagner, traz a saga das expedições de naturalistas e artistas europeus ao interior de um território selvagem da colônia transformada em reino e em império com o estabelecimento da família real portuguesa no continente. O novo mundo tropical é retratado por Spix, Martius, Thomas Ender e Natterer, entre outros, que vêm ao país a convite de Leopoldina, a mulher de Pedro I. Narrado em tom de aventura, o livro tem uma edição primorosa, com 300 ilustrações da época, assinadas por Debret, Taunay e Rugendas, além de outros artistas, e reproduções de documentos raros, como cartas de Pedro I, da coleção Corrêa do Lago, e do último boletim médico sobre a imperatriz Leopoldina, que faleceu aos 29 anos, em 1826.