Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, encruzilhadas que encantam

Nei Lopes e Luiz Antônio Simas durante encontro na Flip | Foto: Divulgação Flip

Dois Rios (de Janeiro), distintos em suas grafias, mas complementares no leito da inclusão, vão se tornar afluentes de um mesmo mar literário associado ao Centro Cultural Banco do Brasil às lutas simbólicas do mês da Consciência Negra em seu Clube de Leitura. No centro da roda de novembro, nesta quarta, às 17h30, estará a obra do compositor, ensaísta e ficcionista Nei Lopes, cujos estudos - tanto no ensaio quanto na ficção - tratam da influência das tradições africanas na cultura brasileira. A seu lado nessa gira estará o mestre em história social pela UFRJ e professor de Ensino Médio, Luiz Antonio Simas. Os livros que serão temas do debate foram escolhidos pelo público, em votação aberta. Do legado de Nei, entra em campo "Bantos, Malês e Identidade Negra". Já da obra de Simas, elegeu-se "O Corpo Encantado das Ruas". No papo a seguir com o Correio da Manhã, os dois fazem um exercício geográfico de poesia.

Em que medida "rua" é literatura... "rua" é jira... "rua" é saber? De que forma os povos ancestrais d'África pavimentam a "rua" que hoje estrutura a noção de circulação numa cidade como o Rio de Janeiro? Qual é a noção de "rua" numa lógica de ancestralidade?

Nei Lopes - Conceituar "rua" depende da circunstância; e a definição pode vir de diversos caminhos. Eu vejo a rua, neste momento e no Rio, como o domínio de Exu-Eleguá, que é o da incerteza, o de todas as possibilidades.

Luiz Antonio Simas - Parece-me que existem duas dimensões da rua, muito vinculadas inclusive às maneiras de perceber o mundo que vem dessas africanidades e repercutem no Rio de Janeiro. Uma dimensão é a dimensão mais material. É a rua como esse espaço de circulação de gente, esse espaço de circulação de mercadorias e tal. Mas você tem uma dimensão espiritual da rua, É aquela rua marcada por uma dimensão, digamos, de transcendência. É aquela dimensão que, a priori, a gente não enxerga, mas está ali o tempo todo. É a vasta tradição que envolve, por exemplo, os orixás, voduns e inquices, ligados à ideia do movimento, ligados à ideia do mercado. Essas dimensões não são dicotômicas; são integradas. Então a rua é esse espaço que, de certa maneira, profana o sagrado e sacraliza o profano. E é um espaço em que as histórias acontecem. É um espaço em que os saberes circulam, é um espaço em que o inesperado pode te encontrar em cada esquina. Frequentar a rua é estar em disponibilidade para saber exatamente o que a rua vai apresentar.

Cabem outras "abolições" na ideia de Abolição, com o maiúsculo da História? Que movimentos de luta por afirmação marcaram o Brasil na luta contra o racismo institucional? O que é escrever a Abolição?

Nei Lopes - A tentativa de "golpe" que ainda ameaça o Estado brasileiro quer "abolir" esta condição. E nós, afro-brasileiros, temos o dever de não permitir. Reescrevendo a Constituição, como clausula pétrea (inquebrável).

Luiz Antonio Simas - Nós temos no Brasil um processo histórico de abolição que é incompleto, que é inconcluso. Eu sempre me recordo da frase do Joaquim Nabuco, quando ele diz que acabar com a escravidão não seria uma tarefa difícil, mas com a obra da escravidão seria uma tarefa bastante complicada, uma tarefa de gerações. Então, a abolição da escravidão no Brasil vem acompanhada de muito perto pela Proclamação da República. E essa República aprofundou a ideia de uma abolição sem inclusão. Uma abolição, portanto, que tirava do Estado o compromisso, inclusive ético, de elaborar políticas públicas de inserção de ex-escravizados e seus descendentes nos canais institucionais da cidadania. Então isso é um racismo institucional que marca a história do Brasil até hoje.

De que maneira, num âmbito literário, caberiam as noções de "fantástico" e de "épico" nas prosas de vocês? Para além da Sociologia e da História, a África que se desenha em forma de Brasil nos estudos de vocês oferece lugar ao que os estudos literários chamam de "mágico"?

Nei Lopes - Na minha literatura cabe tudo, sobretudo a minha negritude!

Luiz Antonio Simas - Eu não teorizo muito o que é ou não literatura. Não penso nessa dimensão nem do fantástico, nem do épico, de jeito nenhum. Eu sou neto de uma mãe de santo. Cresci dentro de um terreiro em que você naturalizava de uma maneira muito tranquila o assombro. Então, os maiores esporros que eu tomei na minha vida, quando era garoto, foram dados por um caboclo que tinha morrido há 400 anos ou por uma preta velha. Isso para mim era normal, naturalizei isso, então eu não penso nessa dimensão não. Eu diria que o que talvez seja mais significativo no que eu faço é essa tentativa de perceber, na miudeza desimportante do cotidiano, a grandeza que reside na reelaboração de modos e sentidos de vida.

O que o Rio, como lugar de cultura, mesmo com suas zonas partidas e seus apartheids, simboliza para vocês?

Nei Lopes - Tenho 83 anos e nunca deixei de viver no Rio. Então...

Luiz Antonio Simas - Ortega y Gasset foi um filósofo espanhol muito importante que disse: "Eu sou eu e a minha circunstância". Então, a minha circunstância é o Rio de Janeiro, mas a minha circunstância também é a minha infância. A minha circunstância é a Baixada Fluminense, a Nova Iguaçu, onde eu cresci. A geografia amplia esse conceito para materialidades diversas, inclusive a da própria corporeidade, no caso, a minha. Então, eu sou um sujeito... como diria o Cacaso, o grande poeta... que vive exilado, em alguma medida, na infância. O que eu escrevo circula em torno desses espantos de infância que marcaram a minha formação. Certamente, a cidade está inserida neles.