Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Guardiã das memórias de Ruanda, formada entre as cinzas e o sangue que a guerra produz, na certeza de que escrever é um ritual de esperança, Scholastique Mukasonga tem espaço aberto no Centro Cultural Banco do Brasil nesta quarta-feira para defender o papel dos sujeitos e dos predicados como espadas e escudos na luta cotidiana dos povos africanos. A autora de "Kibogo Subiu Ao Céu" e "Nossa Senhora do Nilo" é a estrela do Clube de Leitura do CCBB deste mês. Seu encontro com o público será às 17h30. Seu papo tem como mote seu livro "A mulher de pés descalços", em que trata de maneira pungente dos conflitos enfrentados pelas mulheres nas lutas fratricidas entre as etnias Tutsi e Hutu. Na conversa a seguir, ela esboça uma geopolítica possível pautada na aliança e na força feminina.
Em que momento você percebeu que a literatura pode funcionar como identidade? Se a prosa literária agrega e reorganiza fronteiras, que tipo de pátria ela seria?
Scholastique Mukasonga: A escrita me pareceu o meio mais seguro de preservar a memória, essa memória que me foi confiada quando meus pais me enviaram para o exílio no Burundi. Não se tratava apenas de salvar minha vida, mas também de ser testemunha para todos os meus familiares, cuja existência o genocídio dos tutsis em 1994 tentou negar. Foi também a melhor terapia para uma sobrevivente como eu. O perigo, para um sobrevivente, é fechar-se, isolar-se na solidão. Você fica com medo de que a menor palavra possa reavivar memórias dolorosas e acaba preso em seu desespero insuportável. Mas, no meu caso, reconheço minha sorte. A escrita me permitiu superar a culpa de ser uma sobrevivente: por que eles e não eu? Nos piores momentos do meu sofrimento, encontrei uma amiga, uma confidente: uma página em branco.
Ruanda, em sua literatura, seria uma poesia, um romance épico, um conto surrealista ou um ensaio sociológico? De que maneira o que escreve de Ruanda se aproxima daquela nação que existe nos mapas, daquela sangra? De que maneira essa Ruanda real sonha?
A antiga Ruanda, que não conhecia a escrita, possuía, no entanto, uma rica literatura: panegíricos da corte real, épicos guerreiros, poesias pastorais em glória à vaca, contos populares para as vigílias familiares e de vizinhança. Essa literatura oral foi parcialmente transcrita e preservada por pesquisadores ruandeses, como Alexis Kagame, ou ocidentais, antes de ser apagada pela escrita. Essas tradições antigas, consideradas erroneamente como exclusivamente tutsis, foram rigorosamente censuradas pelas duas repúblicas hutus (1962-1994), que se diziam camponesas e cristãs. A nova literatura africana francófona ou anglófona era desconhecida no Ruanda, que se tornou um gueto. O genocídio dos tutsis em 1994 suscitou toda uma literatura de testemunhos que foi publicada principalmente na França e nos EUA e, em breve, em todo o mundo através de traduções. Se os meus dois primeiros livros, "Inyenzi ou As Baratas e "A Mulher dos Pés Descalços", inscrevem-se bem neste contexto, os livros que se seguirão (e já são doze) pretendem ampliar o horizonte literário, seja resgatando um passado há muito falsificado por teorias racistas, seja, como em "Coeur Tambour", abrindo meu país para esse Atlântico negro. Um espaço que, como me disse o presidente Lula, quando me recebeu em São Paulo, no Instituto Lula, "não passa de um riacho entre o Brasil e a África".
"A Mulher Dos Pés Descalços" é um belíssimo tratado das lutas fratricidas entre as etnias Tutsi e Hutu. Que saldo você faz desse conflito hoje? De que maneira ele devastou Ruada? De alguma forma ele reinventou Ruanda?
Um milhão de mortos em três meses, abril, maio e junho de 1994, diante da total indiferença da comunidade internacional. Um país devastado material e moralmente, e agora citado como exemplo por sua reconstrução e política de reconciliação. É fato que os jovens ruandeses querem se voltar para um futuro melhor, mas também pretendem construí-lo retomando tradições até então proibidas. Essas tradições recuperadas nos permitiram salvar nossa identidade ruandesa, que queriam nos negar, e tento revivê-la em meus romances e contos.
O Brasil ocupa que espaço na diáspora africana? E a literatura negra do Brasil?
O Brasil tem a sorte de ser uma terra de todas as culturas. E me parece que as culturas africanas, além de um passado doloroso, ocupam um lugar de destaque por aqui. Eu, que vivo na Europa, reencontrei em cada uma das minhas viagens ao Brasil o perfume da minha terra africana. Sobre as relações entre o Brasil e Ruanda... a Sra. Irene Vida Gala, a nova embaixadora do Brasil em Ruanda, apresentou suas cartas credenciais ao nosso presidente Paul Kagame e foi recebida com entusiasmo em Ruanda no final deste mês de setembro. Estão previstos vários projetos de cooperação e intercâmbios culturais. Ao partir para Ruanda, Simone Paolino, minha querida editora, confiou-lhe, por recomendação da Ministra da Educação Nacional de Ruanda, os cinco livros traduzidos para o português e publicados pela Nõs.