Falta só um tiquinho para o romance "Macumba", festejado exercício de imersão da literatura brasileiras nas ancestralidades africanas, completar dez anos. Faltará um tico menor ainda para ele chegar à telona tão logo seu autor, Rodrigo Santos, consiga terminar um roteiro baseado na cruzada policial de um detetive evangélico para desvendar mortes misteriosas em centros de Umbanda e terreiros de Candomblé.
É do outro lado da Ponte Rio x Niterói que esse escritor de escuta atenta aos orixás bola suas invenções, entre estruturas de ação e rubricas. Sua forma de prosear a crítica literária já consagrou, engatada na eletrizante batucada gramatical de seus dez livros, com destaque para o recém-nascido "A Vida É Uma Série De Acontecimentos Estranhos E Mágicos" (Oficina Raquel), com contos que passeiam entre o cotidiano fantástico e o fantástico cotidiano.
Em novembro, é chegada a hora de outra instância de resenhas, a crítica cinematográfica, curtir sua forma de roteirizar, com a estreia de "8 Segundos, O Desafio", produção de Tomislav Blazic dirigida por Marcio Trigo. No papo a seguir, o são-gonçalense bate cabeça para as entidades das Letras e das telas.
Sua literatura parte de elementos de fé e de misticismo para instaurar um real overdrive... um over real... um real pancadão, carregado de violências e desejos. Que real é esse e o que ele releva sobre o Brasil que te formou?
Rodrigo Santos - Mesmo quando não intencional, o que escrevo acaba sendo um instrumento de imperativo de memória, de registro. Contar as histórias de meu território, de pessoas como eu, é uma forma de existir na arte. Crescer em periferia te deixa assim: exposto à banalidade da violência urbana, e prenhe de desejos — muitos deles plantados pelas vivências adquiridas através de outras histórias, que chegavam pelos livros de banca e filmes da TV. A falta de acesso a serviços básicos e a confortos primários acaba gerando esse vácuo, que muitas vezes é preenchido pelas religiosidades, pelo Mistério. Psicólogo de pobre é sacerdote. Médico então, nem se fala. Eu cresço convivendo com todas essas ausências, essas "presenças" que muitas vezes são ignoradas quando alguém de fora retrata a periferia, porque é sempre um olhar baseado na ausência. Isso acaba porejando no que eu escrevo, saltando (ou pingando) das páginas. O Brasil que me criou é um Brasil desigual, de gente comum, medíocre em tudo (medíocre não de maneira pejorativa, mas sem excelência em nada), senão na busca pela sobrevivência, por um lugar na sombra — porque no sol é foda.
O que os contos te trouxeram como dispositivo literário?
Escrever contos me dá a oportunidade de me livrar rapidamente das ideias. Gosto do resultado de um romance, mas é um trabalho cansativo, chato mesmo, de ficar preso à mesma narrativa por um, dois anos. Sou um cara que vê história em tudo, que cria narrativas para situações inusitadas que brotam todos os dias. Então, criar contos me dá essa celeridade, de concluir e partir para a próxima história.
Como vem sendo a parceria com o cineasta Márcio Trigo, na direção e no roteiro?
Trabalhar com Márcio é um presente, uma oportunidade de aprendizado constante. Nosso primeiro contato foi na escrita do "Sexo & Destino" e a parceria vem rendendo bons frutos, como o filme "8 Segundos, O Desafio", que estreia agora em novembro. É diferente escrever com um roteirista que seja diretor, porque já é uma outra visão impressa no texto. O Márcio tem uma sensibilidade ímpar, um olhar especial para o audiovisual que torna o processo muito mais rico.
Como a Festa Literária das Periferias (Flup) entra no seu processo de construção de carreira?
A Flup foi importantíssima para que eu pudesse fazer meu trabalho chegar a mais pessoas, e uma grande escola. Realizei, junto com o poeta Romulo Narducci, um sarau mensal em São Gonçalo por treze anos. Em 2011, o Julio Ludemir, um dos criadores da Flup, lança um livro lá no sarau e se encanta com a cena que a gente havia conseguido criar na cidade com público de até 250 pessoas ouvindo poesia, mas que não conseguia reverberar para além das fronteiras de São Gonçalo. Em 2012, quando ele e o saudoso Écio Salles criam a Flup, somos convidados a participar. Desde então, participei e contribuí com a Flup em vários momentos. Nessa jornada, consegui dar maior visibilidade à minha literatura.
Que novos livros e que novos filmes você tem pela frente?
Tenho mais três livros prontos, esperando publicação, inclusive o melhor que eu já escrevi: uma antologia de contos grandes, com pegada lovecraftiana (referência ao escritor H.P. Lofecraft). Já tenho o roteiro pronto de um outro filme, em captação; dois argumentos e estou trabalhando na adaptação de "Macumba".
Qual foi o livro que te fez amar os livros?
Eu não venho de um lar de intelectuais, e não tive muito acesso a livros na juventude, porém aprendi desde cedo que enquanto eu estava lendo, não estava vivendo; então usava o livro de refúgio de uma realidade hostil. Mas eram principalmente livros de banca, de sebos ou bibliotecas públicas. Quando penso nos livros que me formaram, não me vêm um Machado de Assis ou um Dostoiévski, mas Agatha Christie, Harold Robbins, Sidney Sheldon, Stephen King... É até difícil, para mim, citar apenas um, mas vou de "Noite na Taverna", do Álvares de Azevedo, pelo qual sou tão apaixonado que ousei fazer uma releitura para os tempos atuais, chamado de "Máquinas Escrotas".