Por: Affonso Nunes

Afetos revolucionários de A a Z

Renato Noguera, filósofo | Foto: Ricardo Lima/Divulgação

O filósofo Renato Noguera propõe uma revolução silenciosa através dos afetos em "ABC do amor: O que a poesia e a filosofia têm a dizer sobre os afetos" (Oficina Raquel), obra que redefine nossa compreensão sobre as múltiplas dimensões do amor. Referência nacional no pensamento afro perspectivista, Noguera constrói um abecedário emocional que atravessa 103 palavras e expressões, criando uma cartografia afetiva que dialoga com tradições ocidentais e cosmopercepções afrodiaspóricas.

Inspirado na tradição dos griots africanos, antigos contadores que transmitiam conhecimento pela oralidade, o autor desenvolve o conceito de letramento afetivo - uma alfabetização emocional para tempos em que saber amar se torna urgência coletiva. "Publicar este livro é um sonho com os olhos abertos! Porque eu sempre quis adubar sorrisos solares dos afetos, compartilhando o desejo de saber o que sinto diante do tumulto do mundo", afirma Noguera.

 

Renato Noguera: 'Todo projeto autoritário de poder precisa encarcerar o desejo'

Renato Noguera | Foto: Marcelo Hallit/Divulgação

A estrutura da obra desta obra de Renato Noguera percorre conceitos como "Abraço", definido como "tecnologia ancestral de aproximação e reconexão" que abarca "do arrepio ao alívio, do calor do toque ao silêncio do amparo", até "Agamia", apresentada como "dinâmica amorosa que valoriza a solitude - estar bem sozinho". O termo central, "Amor", é caracterizado como "ato político e força revolucionária que desafia as estruturas que nos separam, que nos oprimem".

O filósofo entrelaça referências que vão de Espinosa a Bell Hooks, de Platão a Sobonfu Somé, passando por Nêgo Bispo, construindo pontes entre saberes diversos.

Em tempos de relações líquidas e isolamento emocional, a obra oferece ferramentas para vínculos pautados na escuta e responsabilidade, transformando o amor em instrumento de autoconhecimento e mudança social. Noguera destaca conceitos elementais de seu pensamento na entrevista abaixo.

Ao definir o amor como força revolucionária e ato político, não corremos o risco de instrumentalizar os afetos, transformando até mesmo nossas relações mais íntimas em campos de batalha ideológica?

Renato Noguera - Obrigado pela questão. A instrumentalização dos afetos é um risco, mas apenas quando a esfera política é confundida com as estratégias panfletárias das militâncias de projetos coloniais. Todo projeto autoritário de poder precisa encarcerar o desejo, porque sobrevive mobilizado pelo medo. Nada contra o medo em si, mas o problema é fazer dele uma tática de controle. Justamente por isso, eu proponho a compreensão de que todas as relações estão atravessadas por ideologias e sistemas de opressão, dentre outras: racismo, patriarcado, heteronormatividade, capacitismo, classismo. Daí, a proposta do amor como uma força revolucionária ter relação com o desejo de construir mundos com justiça afetiva. Este é o conceito que gostaria de articular: justiça afetiva. Por exemplo, se existe feminicídio numa sociedade, precisamos de uma política dos afetos que rivalize com o patriarcado, o machismo e a misoginia.

Como conciliar a fluidez das cosmopercepções africanas com a rigidez de um dicionário, mesmo que poético?

Essa questão é muito relevante. É importante frisar que existe uma distância estrutural entre dicionário e abecedário. Eu optei por um abecedário. Ao escrever um "ABC", quis propor entradas sem oferecer cercas. É um livro-ponte — ele nomeia, mas não aprisiona. Além disso, eu sempre tive interesse pelos métodos antropológicos - aos 18 anos fui bolsista do Laboratório de Pesquisa Social da UFRJ e comecei a fazer etnografia. Minha formação acadêmica e vivência griot contribuem para sustentar diálogos entre cosmovisões ocidentais, cosmopercepções orientais e indígenas em paralelo com africanas.

Qual é o limite entre letramento afetivo e controle emocional?

Em certa medida, "Letramento afetivo" é uma expressão conceitual que pode carregar tensões. Eu estou construindo essa categoria analítica ao longo de uma pesquisa que se encontra em curso. A minha aposta teórica é de que se trata de um letramento contracolonial. O que não deixa de ser um paradoxo. Mas, de qualquer modo, não tem relação com controle emocional, porque não se trata de reprimir ou mudar o que sentimos. Letrar afetivamente é um exercício de coragem para escutar e dar sentido ao turbilhão de emoções e sentimentos que nos atravessam.

E como garantir que esse letramento afetivo não se torne uma forma de disciplinar corpos e desejos?

O letramento afetivo pode ser compreendido como: "arte de decifrar e compor os sentidos dos afetos, um aprendizado contínuo que se inscreve nos corpos, nos gestos, nas palavras e nos silêncios". Não se trata de dizer o que alguém precisa fazer ou de um dispositivo do biopoder (tal como nos disse o filósofo francês Michel Foucault). Mas, de sugerir que os nossos afetos não são incompreensíveis e podemos usá-los para celebrar a vida ao invés de colocá-la em risco. Por isso, não é o caso de controlar o desejo, mas de vivê-lo para um Bem Viver. Eu compreendo o Bem Viver, essa filosofia e tecnologia ancestral de alguns povos indígenas, como o que dá sentido ao percurso.

Se o amor é pluriversal, por que precisamos de um manual para compreendê-lo?

Sem dúvida, se precisássemos de um manual, o amor não seria pluriversal. Ao invés de uma cartilha, eu aposto num roteiro, ainda por fazer, de trajetórias singulares. Não há interesse numa catequização que ensine formas privilegiadas de sentir, desejar e expressar os afetos. A minha pergunta: como podem os afetos e, especialmente o amor, serem vivenciados de formas que não coloquem a vida sob ameaça? Como a sociedade - um circuito de afetos - pode se organizar de maneiras que a sensação de segurança psicológica não nos leve à barbárie e, tampouco, à "civilização"? Preciso dizer que estou entendendo civilização como um projeto, tal como argumentou o psicanalista austríaco Sigmund Freud, de que a vida civilizada cobra um alto preço de repressão pulsional e mal-estar contínuo.